por Arthur Arock (*)
Dado o Dia dos Namorados (ok, foi semana passada, mas se você leu a coluna do último domingo sabe porque atrasei esse assunto uma semana), eu gostaria de aproveitar a situação para defender um ponto que sempre levanto.
As pessoas, nessa época do ano, costumam querer se virar para as histórias de romance “mais tradicionais”, os clássicos. E, fatalmente, muita gente acaba caindo em “Romeu & Julieta”, de William Shakespeare.
E é aqui que entramos no meu ponto desse texto.
Eu não entendo porque “Romeu & Julieta” tem todo esse status como “O Romance Por Excelência”. Minto, entendo sim. Sei perfeitamente bem que o motivo gira em torno de três pilares:
1 – A eloquência do Bardo de Avon;
2 – Um ponto de vista (na minha opinião equivocado) do que é uma “história de romance”;
3 – Uma tradição que remonta a gerações e gerações atrás.
Mas se você parar para pensar um pouco no roteiro já começa a ver os problemas de ressaltar essa peça como uma história de amor. Eu poderia destacar como ela age muito mais como um conto que denuncia a crueldade dos poderes políticos/econômicos (na figura dos Capuletos e Montéquios), podia até falar do derramamento de sangue gratuito, das piadas de duplo sentido e baixo calão que Mercutio faz (e que quase sempre se perdem nas montagens)… Mas vou lhes propor um execício muito simples para vocês entenderem meu ponto:
Pense que um dia você liga a TV e no jornal está passando a história sobre dois adolescentes (ele de 17 e ela de 13, já começando aí o problema) que cometeram suicídio duplo “por causa de um amor proibido”. Você vai pensar que isso é romântico ou que é estúpido e louco? “Ah, mas na época de Romeu & Julieta essa já era considerada uma idade de adultos, onde as pessoas se casavam”, já argumentaram comigo. Não que eu ache que a falta de noção de pessoas de 17 e 13 anos tenha mudado com o passar dos séculos, mas, se isso não é o bastante, vamos entrar em mais detalhes. E se o repórter dando a notícia dissesse que entre a primeira vez que os jovens se viram e o suicídio duplo houve apenas um espaço de três dias? Sério, o “romance” inteiro durou três dias e eles se mataram. Você tem que concordar que cada vez mais fica difícil de defender isso como uma “história de amor” verossímil. E só para pôr a cereja no topo, o repórter ainda comenta que no mesmo dia que conheceu Julieta (a menina de 13 anos), Romeu (de 17) havia feito vários posts em sua rede social (instagram, facebook, orkut, qualquer uma a sua escolha) declarando seu amor à prima de Julieta, Rosalinda, mas essa só dava fora no pretendente. E sim, nas primeiras aparições de Romeu na peça, ele está apaixonado por Rosalinda – e não Julieta -, jurando-lhe amor eterno e falando que morreria por ela.
Sejam sinceros: o que vocês pensariam se vissem essa notícia? Pensariam: “nossa, essa é a maior história de amor de todos os tempos”! Sinceramente? Percebe meu ponto?
Não raramente, fico imaginando como Shakespeare escreveu o texto: ele entra em casa, sua esposa Anne Hathaway comenta que suas economias estão no final, ele sabe que precisa fazer algo… Mas, o quê? Por sorte, encontra uma de suas filhas (Hamnet, infelizmente já tinha ido para as terras jamais descobertas) e pergunta: “O que vocês jovens estão curtindo hoje em dia?” (com essas exatas palavras, porque ele era um homem à frente do tempo). Susana ou Judith (escolhe a que mais te agradar) responde: “Ah, papai, todo mundo tá comentando desse conto aqui.” Ela entrega pra ele uma versão de “The Tragicall Historye of Romeus and Juliet”, de Arthur Brooke, publicado em 1562 (35 anos antes da peça de Shakespeare). O Bardo de Avon (ou Will para os íntimos) dá uma lida superficial na obra e só consegue pensar: “Que história terrível! Um romance entre dois adolescentes que tem mais números de mortos que dias de duração. Vou colocar umas frases de efeito aqui e vai vender igual água”.
É claro que Romeu & Julieta mantém seu status como “grande história de amor” porque é conveniente para uma narrativa que a sociedade adora reforçar: que o sofrimento é um pré-requisito para o amor. Esse argumento se encontra (para não dizer que é a base) em livros como “Amor de Perdição” até basicamente toda novela, filmes de romance e contos de fada. É uma narrativa em que normalmente se deve lutar contra tudo e todos em nome do amor (porque nada é mais importante que ele), onde não raramente esse amor acontece “à primeira vista”; comumente a mocinha deve ser resgatada de alguma forma pelo mocinho… Vocês conhecem bem o básico desse enredo; todos nós conhecemos. A grande diferença é que Shakespeare tem a decência (ao contrário de Hollywood e afins) de pegar uma história que tem tudo para dar errado e realmente fazê-la dar errado.
Esse tipo de narrativa passa uma mensagem muito incorreta de que “amar é suportar”, “amar é sofrer”, “que se deve lutar por uma relação independentemente de qualquer coisa”… Uma narrativa que normalmente é mais cruel com as mulheres (como quase tudo em nossa sociedade), quase sempre botando nos ombros delas a responsabilidade por lutar contra todas as chances para “fazer a relação funcionar”. Isso não só é irreal, como profundamente cruel. O amor, qualquer relação interpessoal na verdade, deve ser uma via de duas mãos. Só se mantenha em uma relação se a outra pessoa fizer por merecer seu amor. E não migalhas de afeição (como um chocolate no dia dos namorados/aniversario de casamento ou namoro, enquanto no resto do ano a maioria das coisas que ele te dá são tristeza e raiva). Não deveriam ser o suficiente, muito menos promessas de “eu vou mudar” feitas pela enésima vez. E não me isento nesse sentido. Os relacionamentos que tive me mostraram que eu sou uma pessoa horrível no quesito “ser parte de um casal”.
Mas como é sobre o Dia dos Namorados, eu me vejo na obrigação de afirmar o óbvio: isso tudo que disse antes não significa que eu não acredite no amor. É claro que acredito. Tenho bons exemplos dele na vida real e na ficção. Tem vários casais fictícios que são um bom exemplo: Ed Bloom & Sandra Bloom, Carl Fredricksen & Ellie Fredriksen, Raymond Holt & Kevin Cozner, Rubi & Safira, Amelia Pond & Rory Williams, Albert Goldman & Armand Goldman, Benjamin Sisko & Cassidy Yates… Mas (e sim, se você me conhece sabe perfeitamente o que vou dizer agora, porque eu sempre uso esse argumento) eu acredito que nenhum casal fictício é mais exemplar que Morticia & Gomez Addams.
Família Addams surgiu nos quadrinhos, mas a dinâmica Morticia & Gomez como nós a conhecemos veio do seriado de TV de 1964. Na época, a ideia era trazer a estranha família para a televisão como uma antítese de tudo que era considerado normal na TV da época: fazer deles o mais estranho, contrastante e inconvencional o possível. O fato é que, naquela época (e me pergunto se não é ainda hoje), o típico casal de seriado era baseado em “The Honeymooners” (ou “Os Flisntstones” e “Os Simpsons” em um exemplo mais famoso para os brasileiros), em que o homem é frustrado com sua vida, está sempre se envolvendo em esquemas “fique rico rapidamente” (que nunca funcionam), tem cabeça quente, detesta se envolver em assuntos domésticos (muito menos em qualquer coisa envolvendo as crianças ou menos ainda a escola delas); a esposa, por sua vez, é uma dedicada dona de casa e mãe que abandonou toda a vida que tinha antes do casamento, é paciente e tem que lidar/consertar todas as cagadas que o marido faz… E, para ser o oposto disso, o casal protagonista de Família Addams é profundamente apaixonado (e demonstram constantemente, até nas pequenas coisas), é interessado em todos os aspectos da vida conjunta/familiar (isso inclui a escola das crianças, vida doméstica etc.) e ambos se apoiam completamente.
É por isso que eu sempre destaco os dois como o meu casal preferido: eles se estão sempre lá um pelo outro, são constantes, dividem a vida de verdade, são companheiros no sentido mais real da palavra. Não é uma história que termina quando eles ficam juntos e nos prometem um “felizes para sempre”; a gente vê esse “feliz para sempre” sendo construído diariamente e conjuntamente. E, apesar de já estarem juntos há mais de uma década (na série de TV tem um episódio com o 13º aniversário de casamento dos dois, e os filmes passam a impressão que estão juntos há mais tempo ainda, já que os filhos estão mais crescidos), eles ainda são notória e ardentemente apaixonados. A devoção e desejo que um mostra pelo outro (principalmente nos filmes que não tinham as limitações de tema imposta sobre TV dos anos 1960) é admirável e invejável. E é em qualquer cena mesmo: a primeira que eles aparecem, a que eles dançam o tango, em diálogos como “Cara mia, quanto tempo faz da última vez que nós valsamos?” “Ahhhh, Gomez… Já faz horas”… Eu poderia citar vários outros exemplos, mas eu teria que dizer para “tirar as crianças da sala” (apesar de que os filmes passavam na Sessão da Tarde).
Morticia e Gomez mostram que amor não é o desejo que acontece àa primeira vista, que a história não se resume ao príncipe que beijou a princesa e foram felizes para sempre. Eles mostram uma relação em que amor é algo que se constrói todo dia. E que é construído junto. Morticia resume isso com perfeição: “Quando estamos juntos, mon cher, toda noite é halloween.”
Então, sinceramente, por que ainda se prender a Romeu e Julieta? Por que se apegar tanto a um amor de perdição, a um amor morto e não a um amor que celebre a vida e exalte a vontade de viver? Sei que não sou nem de longe um especialista (ou sequer a pessoa mais indicada) para dizer o que é o amor, mas em minha humilde opinião a grande história de amor não deveria envolver veneno e adagas. Particularmente, prefiro aquela onde um dos apaixonados, enquanto beija com devoção e desejo realmente pleno os braços de sua amada, diz apaixonadamente um “Morticia, isso é francês!”.
(*) Nascido em Governador Valadares e atualmente residente em Belo Horizonte. Sua formação acadêmica se traduz numa ampla experiência no setor cultural. É escritor, crítico e comentarista cinematográfico e literário.
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