por Arthur Arock*
Dia 27 de julho seria o aniversário de Gary Gygax.
Não me surpreende se você não reconhecer o nome. Tem uma chance de você não reconhecer, mesmo se for um ávido jogador de RPG (Não reconhece a sigla? Relaxa, a gente já vai chegar lá). Esse é um nome conhecido apenas pelos mais envolvidos com o assunto mesmo, mas eu já explico: Ernest Gary Gygax foi um dos pioneiros do role-playing game (o famoso RPG) ao criar, junto com Dave Arneson, o lendário Dungeons & Dragons (mais popularmente conhecido como D&D) no ano de 1974.
Para os jogadores de RPG, essa explicação deve bastar. Afinal, ser um dos pais do role-playing game já é o suficiente para pôr alguém em meio aos nomes que devem ser lembrados. Mas sei que a maioria dos leitores deve ter pouca (se é que alguma) experiência como RPG. É bem provável que alguns, inclusive, estejam completamente não familiarizados com o conceito. Por isso, explicarei nas linhas abaixo. Só vou fazer um pequeno desvio antes.
Especialmente para esse assunto vou fazer o contrário do que normalmente faço: hoje vou do tópico mais específico primeiro até chegar ao mais geral (vocês vão entender o porquê, espero). Já falei quem foi Gygax. Então, deixe-me falar sobre o que é o D&D para finalmente chegar ao que é RPG.
Quero falar de D&D especificamente, não só porque ele foi a criação do Gygax e do Arneson nos idos da década de 1970, mas também porque ele é o sistema de RPG mais conhecido e difundido. Dungeons & Dragons (cuja tradução é “Masmorras e Dragões”, mas é normalmente só chamado de D&D) já foi tema de quadrinhos, romances, jogos de tabuleiro, videogames e filmes (os filmes que vi são muito ruins, inclusive). Alguns devem reconhecer como “aquele jogo que os meninos de Strange Things jogam”, mas é mais popular que a maioria imagina. Notórios jogadores de D&D incluem nomes como Vin Diesel, Drew Barrymore, Robin Williams, Dwayne “The Rock” Johnson, James Franco, Joseph Gordon-Levitt, Aubrey Plaza, Matt Groening (criador dos Simpsons), Jon Favreau (diretor de “Iron Man” e “Mandalorian”), Stephen Colbert, Stephen King (famoso escritor), Marilyn Manson, Kevin Smith, Patton Oswalt, John C. Reilly, Karl Urban, Steven Spielberg, Deborah Ann Woll, Joss Whedon (diretor de “Avengers”), Wil Wheaton, e meu preferido, Terry Crews. Esses são só alguns dos muitos e muitos nomes, tantos que há boatos de que até a dama do teatro e cinema Judy Dench seja adepta de uma boa sessão de D&D. Você já deve ter visto D&D mesmo sem saber nas muitas aparições que ele fez na TV: o já citado “Strange Things”, “The Simpsons”, “Community”, “The IT Crowd” (um show britânico hilário), “Dexter’s Laboratory”, “Teenage Mutant Ninja Turtles”, “Gravity Falls”, “The Big Bang Theory”, “Buffy, the Vampire Slayer”, “That ’70s Show”, “Regular Show”, “The Amazing Wolrd of Gumball”, “She-Ra and the Princesses of Power”, uma cena em “E.T. The Extra-Terrestrial”, toda a série de filmes “The Gamers”… até “My Little Pony: Friendship is Magic”.
Porém, sem dúvida, a série mais famosa relacionada a D&D foi o desenho “Caverna do Dragão”, que marcou uma geração. “Caverna do Dragão” é todo baseado em D&D, tanto que o seu título original é “Dungeons & Dragons”, exatamente o mesmo do jogo. Os personagens têm classes que existiam no jogo naquela época, os inimigos são retirados diretamente do bestiário de D&D e o Mestre dos Magos (em inglês “Dungeon Master”) é uma referência direta ao “Mestre” ou “Narrador” do jogo.
Mas, vamos ao ponto, de que você deve estar realmente se questionando: o que é um role-playing game, o RPG? Todo RPG é uma atividade coletiva, por isso pedi ajuda aos meus inestimáveis companheiros de mesa e outros amigos que jogam RPG para me ajudarem nessa descrição. A pergunta que fiz para eles foi “Como você explicaria o que é RPG para alguém que nunca jogou? E o que você diria se estivesse tentando convencê-los a jogar?” O texto que segue abaixo foi construído por meio dessa narrativa coletiva (como é o RPG).
Role-playing game (que significa literalmente “jogo de interpretação”) é uma contação de história coletiva em que não é apenas uma pessoa contando a história, mas o grupo como um todo. E o mais interessante é que o coletivo é sempre maior que a soma das suas partes (algo que é verdade em muitas situações assim). Afinal de contas, essa história é construída por alguns elementos distintos.
Em questão de regras, o jogo de RPG é construído sobre dois pilares: Cenário e Sistema. Sistema é o conjunto de regras que regem a ação e o jogo (o próprio D&D é o mais famoso, mas temos Gurps, Shadowrun, Dungeon World e outros). A maioria dos sistemas usa um fator de sorte na decisão do resultado de qualquer ação, e comumente esse fator de sorte é representado por um dado. Deixe-me dar um exemplo usando o dado de 20 lados, que é o mais comum em D&D: o resultado de qualquer ação que seu personagem tente tomar é decidido por um conjunto das suas habilidades naturais e/ou treinamento e/ou experiências de vida somado a um fator de sorte (nesse caso, o dado de vinte lados que nós popularmente chamamos de d20). Imagine o cenário de um duelo de mira entre Legolas e um stormtrooper de Star Wars.
Legolas precisa de um resultado cinco ou qualquer número acima para acertar o alvo com uma flecha de seu arco; o stormtrooper, por sua vez, precisa de um resultado dezessete ou maior para conseguir acertar a (notoriamente ruim) mira com sua pistola blaster. É claro que essa competição tem um resultado mais provável; porém, ainda há a chance de Legolas errar e/ou a chance de o stromtrooper acertar. Tudo depende do fator sorte. Ou seja, tudo depende do dado, pois, como diz a frase de efeito dos meus companheiros de aventura preferidos: “Não Existe Aventureiro Sem Sorte” (quem disse que Deus não joga dados não fazia ideia do que estava falando).
Por sua vez, o Cenário é o mundo/situação na qual a história vai transcorrer (aí é literalmente qualquer coisa que você conseguir imaginar).
Escolhido o mundo, cada jogador cria seu personagem (de acordo com as regras de sistema e cenário, além, é claro, da imaginação de cada um) para interagir naquele mundo. Mas quem faz o papel do resto do mundo que não são os personagens jogadores? Nesse ponto entra um outro tipo de jogador chamado normalmente de “Mestre” (uma versão curta para “mestre da masmorra”, como o nome original do Mestre dos Magos) ou “Narrador”. O Narrador tem o papel de conduzir a história, atuar como o mundo à volta dos Personagens Jogadores e reagir às (não raramente inusitadas) decisões dos mesmos jogadores. Se fosse um videogame, o Narrador seria a inteligência artificial por trás dele.
Mas não é um videogame. E essa é a beleza de estar jogando um jogo de “faz de conta” (para usar um termo da infância que não deixa de se aplicar, apenas com mais regras) e não de tabuleiro ou virtual: a qualidade de uma mesa de RPG é restrita apenas pela imaginação e criatividade dos personagens de interagir uns com os outros, com o mundo e a história que eles constroem juntos (e um pouco de boa vontade da sorte para ajudar no resultado dos dados).
Agora, quanto a “o que você diria se estivesse tentando convencê-los a jogar?”, a resposta, mesmo variando de forma, tinha basicamente a mesma mensagem: o principal objetivo do RPG é reunir um grupo de amigos para se divertir.
E eu posso admitir por experiência própria que cria, sim, profundos vínculos de camaradagem, sem falar (e para o bardo que sou, isso é de grande importância) nas muitas e maravilhosas histórias para contar nas tabernas da vida.
E qual de nós não leu ou assistiu a uma história e pensou: “eu faria (tal coisa) diferente”. Essa é a chance de literalmente ser coautor de uma história, decidir como seu personagem agiria em cada situação e como lidaria com as consequências das suas decisões. Um amigo meu citou a frase “Um rpgista escolheu não viver uma vida, mas, sim, viver várias”, algo que de outra forma só é possível para atores. Mas, no caso do RPG, você é o ator e escritor da obra (só é uma obra colaborativa). Sem contar memes como o que diz “D&D permite que você viva suas fantasias mais impossíveis como: falar várias línguas, viajar com amigos, ser carismático, acordar cedo, ter dinheiro.”
Inclusive, agora falando só por mim, tem sido uma das poucas atividades que eu consegui manter mesmo na pandemia (apesar de os encontros agora serem on-line) e possivelmente a principal responsável por ajudar a manter a minha sanidade (ou pelo menos o que eu consegui manter dela).
Olha… Permitam-me uma nota bastante pessoal: eu sei que existem poucas pessoas mais suspeitas do que eu para falar de RPG. Eu me apaixonei pelo jogo desde a primeira vez que joguei, nos idos de 2000. E tenho sido um RPGista inveterado pelos últimos 19 anos (se não me engano). Foi o RPG que despertou meu interesse pelo teatro. Essa talvez seja minha atividade preferida. Ser um RPGista é um dos principais adjetivos que eu usaria pra me descrever e um que eu guardo com carinho em meu coração.
Então, você (como sempre) não tem obrigação nenhuma de me ouvir/ler nesse (ou qualquer outro) assunto. Mas, mesmo assim, vou fazer o que sempre faço nesta coluna: tentar o meu melhor possível para te instigar a conhecer o assunto (neste caso, o RPG) em primeira mão, em experiência pessoal. Eu acredito piamente que esse seja o melhor modo de tirar suas próprias conclusões sobre as coisas. Então eu urjo para que você, leitor, dê uma chance (ou uma nova chance) ao RPG. Mesmo porque… quem sabe? Vai que a sorte lhe sorri, os dados rolam ao seu favor, você descobre uma nova paixão, como eu descobri anos atrás. Vai que é uma decisão superacertada, tanto que (sem o perdão do trocadilho) seja o acerto crítico da sua vida!
Só tem um modo de descobrir, o que eu chamo de modo Bilbo Bolseiro: quando a aventura bater à sua porta, só há uma coisa a fazer/dizer:
“Go back? No good at all!”
(“Voltar? Não, isso não vai servir!)
“Go sideways? Impossible!”
(“Ficar de lado? Impossível! )
“Go forward? Only thing to do! On we go!”
(“Ir em frente? A única coisa a se fazer! Então avante!)
“I’m Going On An Adventure!”
(“Eu estou indo em uma aventura!”)
Eu termino desejando nesse Gygax Day boa sorte, bons dados, boas campanhas e boas histórias para todos (os que vieram antes, como o próprio Gygax, os atuais e os futuros) aventureiros.
* Nascido em Governador Valadares e atualmente residente em Belo Horizonte. Sua formação acadêmica se traduz numa ampla experiência no setor cultural. É escritor, crítico e comentarista cinematográfico e literário.
As opiniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores por não representarem necessariamente a opinião do jornal