por Arthur Arock*
Eu não vou negar: cedo ao impulso e ao clichê.
Sete de Setembro, o Dia da Independência.
Qualquer um com o estudo mais atento da história sabe que esse título é questionável. O famoso “independência pra quem?”. Infelizmente, a onda de facismo, negacionismo científico, corrupção desenfreada e falta de um mínimo de sombra de respeito e/ou empatia pelo povo brasileiro demonstrado por Jair Bolsonaro, seus comparsas e o governo liderado por eles, o nome “Dia da Independência” só ganha mais uma camada de ironia que a faz parecer uma piada de mau gosto. Algo que só fica mais e mais óbvio cada vez que esse governo, com o apoio de uma ala das forças militares e conivência de muitos deputados e senadores, ameaça abertamente a democracia.
E, sim, como sempre, eu vou falar de cultura (mais um dos temas que esse governo tenta destruir). Admito que até pensei em falar de Bacurau, mas, sinceramente, creio que a essa altura todo mundo tenha visto esse filme (e se não viu, é um erro que devia ser remediado agora).
Todavia, vou aproveitar a data “patriota” (porque nós sabemos que a “independência” foi só o primeiro “acordão” para manter as elites no poder) e falar de uma figura que verdadeiramente lutou por um país melhor, que verdadeiramente amou o Brasil a ponto de se tornar um mártir por ele. Nós tivemos vários mártires reais nesse país, que deram a vida pela liberdade e independência do Brasil: aqueles que lutaram e morreram lutando contra a Ditadura Militar nesse país que foi desde o golpe de 1964 a 1985, mas que os efeitos são sentidos até hoje.
Um dos exemplos mais recentes é a censura ao filme “Marighella”, dirigido por Wagner Moura e com Seu Jorge atuando como o personagem-título. O filme é de 2019, mas até hoje ainda não teve direito de estrear propriamente dito nos cinemas nacionais. Como disse Wagner Moura em uma entrevista, o filme não estreou por uma questão politica e que o governo (por meio da Ancine) está usando todos os meios burocráticos para impedir os lançamentos dos filmes com os quais discorda.
Mas por que o governo bolsonarista, que comumente se esconde atrás de uma falsa fachada de patriotismo para defender ideias fascistas e a ditadura militar, iria querer censurar “Marighella”? Se você precisa fazer essa pergunta é mais uma prova de quão bem-sucedida a campanha de censura e apagamento da história durante a ditadura ainda é.
Carlos Marighella foi um político, escritor e guerrilheiro, além de um dos principais organizadores da luta armada contra a ditadura militar brasileira, sendo cofundador da Ação Libertadora Nacional, organização de caráter revolucionário. Ele chegou a ser considerado o inimigo “número um” do regime (e não há prova maior que alguém é um herói do que ser o inimigo número um de uma ditadura militar tão maligna quanto foi a brasileira). Marighella foi um dos muitos combatentes que se levantaram para lutar pela liberdade em um dos (senão o) momento mais sombrio do país.
É claro que um governo que defende uma ditadura que exilou, torturou e matou tantas pessoas quer evitar que se conte a história daqueles que tiveram a coragem de lutar contra eles. Principalmente levando em conta o quanto os membros do governo ditatorial (junto com seus apoiadores) mentiram e censuraram para tentar esconder a fraqueza do regime militar, assim como para pintar os combatentes da liberdade como os vilões. Esse governo que hoje aí está (notoriamente defensor da ditadura e seus crimes) certamente não quer que as pessoas saibam que o único meio que eles conseguiram de assassinar Marighella (porque eles não o prenderam, simplesmente o assassinaram no meio da rua) foi por meio de primeiro capturar e torturar frades dominicanos, torturá-los impiedosamente e obrigá-los a atrair Marighella para uma armadilha.
Essa história, como já dito, é contada no filme “Marighella” (2019), mas também no filme “Batismo de Sangue” (2007), baseado no livro do mesmo nome (de 1983) e escrito pelo Frei Betto.
Na iminência do Dia da Independência eu não posso reforçar o quanto eu recomendo ver esses filmes: ver o quanto custou para nós retomarmos (nem que seja o pouco que temos) de independência e liberdade como povo brasileiro quando o perdemos, quando deixamos que fosse arrancada de nós pela ditadura militar. Também não posso deixar de reforçar que precisamos nos lembrar de toda essa luta, de todas as atrocidades causadas pelo regime militar, de todas as vidas e famílias destruídas pela ditadura nesse momento em que nos vemos sob constantes ameças de Bolsonaro e outros membros de seu governo/círculo interno contra a democracia, independência, liberdade e contra a própria integridade e capacidade de continuar vivo do povo brasileiro.
Eu sei que, dado o tema “nacionalista” do feriado, talvez devesse fechar com algum trecho de um hino da pátria… Ou, falando em hinos, podia citar dois compostos por Chico Buarque para a “Ópera do Malandro”: enquanto o governo e seus apoiadores estão cantando “Hino de Duran”, enquanto o resto de nós esperamos para entoar as frases do “Hino da Repressão” (que apesar do nome é uma letra anti-repressão), quando falamos dos criminosos que hoje ocupam o governo – “E se definitivamente a sociedade; Só te tem desprezo e horror; E mesmo nas galeras és nocivo; És um estorvo, és um tumor! Que Deus te proteja, és preso comum; Na cela faltava esse um!”… Ou mesmo, já que citei Chico Buarque, podia tentar evocar esperança em tempos melhores com citações como a música “Apesar de Você”, mas não me sinto tão otimista…
Mas, mesmo com todas essas opções, escolho terminar meu texto do mesmo jeito que Wagner Moura escolhe terminar seu filme: com as palavras de Gonzaguinha na música “Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória” (que você pode encontrar no Youtube com na voz do próprio Gonzaguinha ou da inigualável Elza Soares):
Memória de um tempo onde lutar
Por seu direito
É um defeito que mata
São tantas lutas inglórias
São histórias que a história
Qualquer dia contará
De obscuros personagens
As passagens, as coragens
São sementes espalhadas nesse chão
De Juvenais e de Raimundos
Tantos Júlios de Santana
Dessa crença num enorme coração
Dos humilhados e ofendidos
Explorados e oprimidos
Que tentaram encontrar a solução
São cruzes sem nomes
Sem corpos
Sem datas
Memória de um tempo onde lutar por seu direito
É um defeito que mata
E tantos são os homens por debaixo das manchetes
São braços esquecidos que fizeram os heróis
São forças, são suores que levantam as vedetes
Do teatro de revistas, que é o país de todos nós
São vozes que negaram liberdade concedida
Pois ela é bem mais sangue
Ela é bem mais vida
São vidas que alimentam nosso fogo da esperança
O grito da batalha
Quem espera, nunca alcança
Ê ê, quando o Sol nascer
É que eu quero ver quem se lembrará
Ê ê, quando amanhecer
É que eu quero ver quem recordará
Ê eu, não posso esquecer
Essa legião que se entregou por um novo dia
Ê eu quero é cantar essa mão tão calejada
Que nos deu tanta alegria
E VAMOS A LUTA!
* Nascido em Governador Valadares e atualmente residente em Belo Horizonte. Sua formação acadêmica se traduz numa ampla experiência no setor cultural. É escritor, crítico e comentarista cinematográfico e literário.
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