JOELMIR TAVARES (FOLHAPRESS) – Um deputado que apareceu de cueca samba-canção na foto de uma revista, um outro que atacou ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e louvou a ditadura militar e uma deputada apontada como mandante do assassinato do marido.
A Câmara dos Deputados poderá dizer em breve se, de 1949 para 2021, as definições para quebra de decoro parlamentar foram atualizadas no Brasil.
O episódio da cueca, na década de 1940, levou à primeira cassação de um deputado por violar o decoro. O alvo: Edmundo Barreto Pinto (PTB-DF), condenado pelos pares após ter aparecido em 1946 nas páginas da revista O Cruzeiro trajando casaca e uma peça íntima até comportada para os padrões atuais.
Foi um fuzuê. O político chegou a processar os responsáveis pelo ensaio-reportagem “Barreto Pinto sem máscara”, o fotógrafo Jean Manzon e o jornalista David Nasser, dizendo que fora ludibriado, mas não teve jeito.
Seus colegas na época consideraram que ele tinha desmoralizado a Câmara e ridicularizado sua função ao se deixar fotografar naqueles trajes.
Mais de 70 anos depois, os deputados estão às voltas com casos como os de Daniel Silveira (PSL-RJ) e Flordelis (PSD-RJ), que têm suas condutas examinadas no Conselho de Ética da Câmara e poderão ser punidos até com a perda do mandato.
O primeiro foi preso na semana passada após divulgar um vídeo com ameaças a membros do STF e apologia do AI-5, o mais duro instrumento de repressão do regime militar. A postagem do bolsonarista elevou a temperatura na já tensa relação entre os Poderes.
A segunda é monitorada por tornozeleira eletrônica depois que foi denunciada pelo Ministério Público sob acusação de ter mandado matar o marido, Anderson do Carmo. Ela nega participação no crime. Colegas se queixam nos bastidores de constrangimento pela presença da deputada nas sessões.
Nesta terça-feira (23), a Justiça determinou o afastamento temporário de Flordelis do mandato. A decisão não impede, porém, que o Conselho de Ética mantenha a representação aberta contra ela.
Como mostrou a Folha, o colegiado tem um histórico de lentidão e penas brandas, espelhando o corporativismo historicamente associado à Casa.
No caso de Barreto Pinto (1900-1972), um parlamentar inexpressivo politicamente e com fama de fanfarrão e bon-vivant, o debate sobre decoro começou por causa do ensaio na revista, mas ganhou proporção porque o protagonista da história persistiu em polêmicas.
Após a publicação, ele repetiu a combinação casaca e cueca como ator em uma peça de teatro e fez declarações zombando da repercussão. Três anos mais tarde, a situação era tão indefensável que sua própria bancada o desligou pelo que chamou de atitudes reprováveis.
Pinto levantava a tese de que fora manipulado pelos profissionais de O Cruzeiro. De acordo com ele, Manzon e Nasser –que formaram uma dupla lendário no jornalismo brasileiro pela ousadia e irreverência– disseram que a câmera o enquadraria apenas da cintura para cima.
A sugestão para que o deputado dispensasse a calça, por causa do forte calor no Rio de Janeiro no dia das fotos, partiu dos repórteres, conforme relato do jornalista Carlos Chagas à Rádio Câmara em 2006.
“E, ingenuamente, o Barreto Pinto aceitou. Eles queriam mesmo uma coisa ridícula e fotografaram o Barreto Pinto de casaca da cintura pra cima, com gravatinha branca e tudo, mas de cueca”, disse Chagas, que pesquisou o episódio para seu livro “O Brasil sem Retoque”.
Segundo o jornalista, contudo, o deputado perdeu o mandato muito mais por disputas políticas com o PTB, partido do então senador e ex-presidente Getúlio Vargas, do que por ter realmente ofendido o decoro. A cassação, disse Chagas, era também uma maneira de prejudicar Vargas.
Na época, o PTB saiu em defesa do filiado e reivindicou que o caso fosse arbitrado pela Justiça, mas prevaleceu a decisão final do plenário da Câmara, que por maioria decidiu encurtar o mandato de Pinto.
Um dos argumentos dos deputados favoráveis à perda da cadeira era o de que, ainda que o getulista tivesse sido enganado, ele agira sem cautela ao se permitir ser clicado pela revista com a tal samba-canção branca.
Há conflitos de versões. Em reportagens da ocasião -resgatadas pelo jornalista Luiz Maklouf Carvalho no livro “Cobras Criadas – David Nasser e O Cruzeiro”-, fotógrafo e repórter desmentiram o entrevistado e falaram que ele não só concordou com o ensaio como também sugeriu poses, cenários e trajes.
“Barreto Pinto sem máscara” reunia ainda fotos do deputado sem camisa em uma banheira, falando ao telefone, e de sunga na praia, com legendas destacando seus “pés chatos”, a “barriga mole”, a “carne branca” e as “pernas cabeludas”. Era “um tipo bem mal-acabado”, segundo a descrição.
Roupas íntimas, processos por quebra de decoro e cassações voltariam a aparecer no noticiário político inúmeras vezes desde então.
Um dos momentos em que se rememorou o caso de Pinto foi em 2009, quando o então senador Eduardo Suplicy (PT-SP) circulou de sunga vermelha (alguns disseram que era cueca) por cima do terno, nos corredores do Senado, a pedido da equipe do programa “Pânico na TV” (RedeTV!).
Por causa da brincadeira proposta pela apresentadora Sabrina Sato, Suplicy virou alvo de uma investigação preliminar da corregedoria da Casa para verificar se ele tinha quebrado o decoro da função ao andar pelo Congresso com o visual que imitava o do personagem Super-Homem.
A apuração acabou arquivada porque o programa, por solicitação do petista, não exibiu na TV as cenas gravadas em Brasília.
Na semana passada, o hoje vereador na capital paulista elogiou no Twitter a decisão da Câmara de manter a prisão do deputado Daniel Silveira. Suplicy afirmou que o bolsonarista apresentou “comportamento ofensivo à Constituição, à democracia e aos ministros do STF”.
Mais recentemente, outro caso de destaque foi o do senador Chico Rodrigues (DEM-RR), pego com R$ 33 mil na cueca em outubro. Uma representação por quebra de decoro contra ele, que estava com notas entre as nádegas quando foi abordado pela Polícia Federal, ficou paralisada no Conselho de Ética da Casa.
Rodrigues reassumiu o mandato na semana passada, após mais de quatro meses afastado, em licença pedida por ele, oficialmente, para tratar de assuntos pessoais.
A definição jurídica de decoro é ampla, mas, como regra básica, o conceito envolve a obrigação do parlamentar de ter uma conduta correta, íntegra e proba.
Segundo o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, o comportamento decoroso envolve as premissas de exercer o mandato com dignidade e respeitar colegas, outras autoridades e as instituições democráticas.
“Abusar das prerrogativas constitucionais asseguradas aos membros do Congresso Nacional” é um dos motivos que podem levar à punição com perda de mandato de deputados e senadores, conforme prevê a Constituição.
“Nos três casos [Barreto Pinto, Daniel Silveira e Flordelis] estamos diante de situações condenáveis, mas em níveis diferentes”, afirma a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, professora da USP e da Universidade Princeton (EUA).
“Flordelis está sendo julgada por assassinato, Silveira por ataque a instituições democráticas”, segue ela. “São acusações graves que fazem com que, à luz desses exemplos, o caso de Barreto Pinto soe naîve ou ingênuo. O Brasil mudou, seus políticos também.”