por Arthur Arock*
As pessoas assumem que, só porque eu sou um fã de quadrinhos, fatalmente vou ser um fã dos filmes de super-heróis. Na verdade, por ser um fã dos quadrinhos, eu fatalmente não costumo gostar dos filmes de super-heróis. Não porque o que chega na tela seja diferente das HQ’s. Afinal, são mídias diferentes; então, adaptações são necessárias (e você não vai tentar resumir os mais de 90 anos de história de, por exemplo, um Superman em apenas um filme). O problema é que, na maioria das vezes, os filmes acabam perdendo a essência do que faz aquele personagem ser ele mesmo – e não, nem de longe, são os poderes.
Normalmente, os filmes de heróis (vamos focar aqui em DC e Marvel) se reduzem a uma formulazinha: os filmes da Marvel, por exemplo, quase sempre me dão a sensação de que eu estou vendo um filme da Sessão da Tarde, com o excesso de piadas e momentos exageradamente emocionais (e normalmente me dão a sensação de que são forçados). Sem contar os enormes buracos na história e nas regras de seu “universo expandido” que os próprios filmes apresentam. Dois exemplos: primeiro em “Avengers: Endgame” (2019) eles passam o filme todo trabalhado e reforçado a ideia de que viagem no tempo cria uma outra linha temporal a partir do ponto em que o viajante do tempo intervém; porém, no final, a presença do velho Steven Rogers na mesma linha do tempo de onde ele partiu quebra toda essa ideia. Já em “Thor” (2011), eles mostram que Loki, na verdade, é um gigante de gelo e está escondido na forma de um asgardiano por meio de magia de Odin (ambos os seres, gigantes e asgardianos, são naturalmente muito mais fortes fisicamente que humanos). Mas na série “Loki”, quando ele vai para um lugar onde toda magia é cancelada, ao invés de virar um gigante ou manter a força sobre-humana de um asgardiano (levando em conta que não é um superpoder, é a forma natural deles), simplesmente se torna um humano normal.
E a DC não apenas não é melhor, como costuma ser pior. Eles substituem o excesso de piadas da Marvel por um excesso de estética “dark and edgy” (ou o que um adolescente de 13 considera “dark and edgy”), mas mantém a tendência a ignorar a própria lógica interna que criaram para seu “universo expandido”. E, sim, isso inclui o chamado “Justice League – Snyder’s Cut” (2021), que eu detestei. Achei melhor que a versão de “Justice League” (2017) que chegou ao cinema? Certamente. Mas isso não significa que seja nem de longe bom. Bater o dedo na quina do móvel é melhor que ter ele perfurado por um prego enquanto você martelar um quadro na parede, mas isso não faz nenhuma das duas sensações algo agradável. É a mesma coisa com esses filmes.
Mas há exceções à regra, é claro. Existem, sim, vários filmes de super-herói (novamente me atento a DC e Marvel) que eu amo: “Spider-Man: Into the Spider-Verse” (2018), “Black Panther” (2018), “Deadpool” (2016), “Deadpool 2” (2018), “The Lego Batman Movie” (2017), “Batman: Mask of the Phantasm” (2003), “Batman Begins” (2005), “The Dark Knight” (2008), “Superman vs. The Elite” (2012), “Batman & Mr. Freeze: SubZero” (1998), “Batman Beyond: Return of the Joker” (2000), “Spider-Man: Far From Home” (2019), “Spider-Man: Homecoming” (2017), “Logan” (2017), “Green Lantern: Emerald Knights” (2011), “Justice League: Gods and Monsters” (2015), “Superman: Unbound” (2013), “Batman: Year One” (2011), “Superman: Brainiac Attacks” (2006), “Batman: Gotham Knight” (2008), “Ultimate Avengers: The Movie” (2006), “Ultimate Avengers 2: Rise of the Panther” (2006), “Thor: Tales of Asgard” (2011)…
Mas, definitivamente, a coisa de super-heróis que eu mais gostei nos últimos anos (talvez colado com “Spider-Man: Into the Spider-Verse” e “Black Panther”) não é um filme, mas uma série chamada “Doom Patrol”.
Para quem nunca nem ouviu falar de “Doom Patrol” (e imagino que seja a maioria), essa é uma superequipe que surgiu nos quadrinhos no ano de 1963, sendo apelidada desde seu surgimento como “os heróis mais estranhos do mundo”. A premissa do quadrinho (e que chega bem transmitida à série) é: “e se pessoas com ‘superpoderes’ fossem uma maldição e não uma bênção?”. Os membros da “Doom Patrol” (no Brasil chamada de “Patrulha do Destino”) são pessoas cheias de defeitos e traumas que ganham poderes por um motivo ou outro, mas isso só acaba lhe trazendo mais problemas e traumas.
E a série de 2019 segue a mesma premissa. Ela traz roteiros completamente malucos, mas ao mesmo tempo recheados de questionamentos importantes, algo que os fãs dos quadrinhos passaram a esperar de uma boa história com a Patrulha. Como o próprio vilão, o Sr. Ninguém, introduz na primeira fala do primeiro episodio da série:
“Pronto para uma história sobre super-heróis? Ugh. Mais super-heróis da TV, exatamente o que o mundo precisa. Seja honesto, você já se enforcou? Mas, e se eu lhe contasse que isso é na verdade uma história sobre super-zeros? Perdedores meta-humanos dolorosamente patéticos. Que tal isso? Pronto para se sentir melhor sobre suas próprias vidas miseráveis pela próxima hora ou mais? Me siga.”
Além dos excelentes roteiros, você tem grandes atuações para acompanhar (em papéis nem um pouco fáceis). Como protagonistas nós temos os seis membros que compõem a Patrulha do Destino:
Cliff Steele (interpretado por Brendan Fraser – sim aquele do filme da múmia), um ex-motorista da NASCAR cujo cérebro foi transplantado para um corpo robótico depois que um acidente de carro (causado porque ele estava dirigindo bêbado) destruiu o seu corpo original; ele tem que lidar não apenas com o fato de seu novo corpo não tem nenhum senso de tato, olfato ou paladar, como tem que encarar a pessoa horrível e egocêntrica que ele era antes do acidente.
Jane (um personagem desafiante que conta com a ótima interpretação de Diane Guerrero) é uma jovem que desenvolveu 64 identidades distintas a partir de traumas de infância e recebeu poderes para cada identidade após uma experiência a que foi submetida involuntariamente.
Rita Farr (interpretada por April Bowby) é uma ex-atriz de Hollywood dos anos 40 cuja estrutura celular foi alterada para um estado gelatinoso após ser exposta a um gás tóxico; na série ele nunca aprendeu a controlar esse novo estado, o que a faz estar em constante luta simplesmente para manter uma forma sólida.
Larry Trainor (interpretado por Matt Bomer) é um ex-piloto da Força Aérea dos Estados Unidos com uma entidade de energia negativa vivendo dentro dele; ele acaba desfigurado pela queda do avião que se seguiu ao entrar em contato com o “espírito negativo”, por isso ele é coberto por bandagens especiais para evitar a propagação da radioatividade emitida por seu corpo; Larry (um militar da década de 60) também ao longo da série vai passando por um processo de aceitação de si mesmo como um homem gay.
Vic Stone, o Cyborg (interpretado por Jovian Wade), é o único super-herói propriamente dito na série, que recebeu melhorias cibernéticas de seu pai Silas após um acidente que o levou a perder vários membros e à morte de sua mãe (e sim, é o mesmo personagem de “Teen Titans”).
E eles são “liderados” por Niles Caulder, o Chefe (interpretado por ninguém menos que Timothy Dalton, aquele mesmo que já foi o James Bond), um médico responsável por tratar os membros da Patrulha do Destino e dar-lhes residência em sua mansão (e eu não posso contar mais nada para evitar os spoilers).
A série ainda tem um elenco de apoio brilhante, como o supervilão Sr. Ninguém (interpretado pelo sempre divertidíssimo Alan Tudik), com os poderes de onipresença, capacidade de viajar através das dimensões e alterar a realidade. Ele é o único personagem ciente de estar em uma série de televisão por causa de suas habilidades, e com isso ele frequentemente quebra a quarta parede e manipula eventos por meio de sua narração. Outro grande personagem de apoio é o mal-humorado mago Willoughby Kipling (interpretado por Mark Sheppard), que se autodeclara um “detetive ocultista” e usa em seus feitiços (que realmente funcionam) itens como “fio dental usado por Janis Joplin”.
Isso tudo pode te dar uma rasa ideia de o quão estranha e caótica é essa série, mas eu aviso: você ainda não viu nada (espere até chegar em personagens como “Danny, the Street” ou “Flex Mentallo”). Eu sei que isso parece um pouco demais, e talvez seja, mas eu realmente aconselho essa série. Ela sabe que sua premissa é absurda e usa isso em sua vantagem, mas quando é para tratar de qualquer assunto sério (como as fragilidades, traumas e falhas dos personagens), ela trata com a maior seriedade, nunca como motivo de piada. Isso, essa sensação de humanidade, com suas forças, defeitos, falhas, fraquezas crescimento… Isso gera uma sensação de realidade nesses personagens, por mais completamente absurdo que seja a premissa de cada um deles e do mundo em que habitam (e que se encontra constantemente contra eles).
Por mais que “os heróis mais estranhos do mundo” pareçam um pouco absurdos/caóticos/loucos demais, eu realmente recomendo que você dê uma conferida nas duas primeiras temporadas dessa série. Dá tempo, inclusive, de ter visto tudo para acompanhar a nova temporada que vai estrear agora dia 23 de setembro na HBO Max.
E… Quem sabe? Talvez você possa descobrir todo um novo lado das “histórias de super” que nunca nem imaginou. E mais: pode gostar. Pode acabar percebendo que o que nós consideramos estranho, absurdo, caótico, não é tão incompreensível assim e que o desconhecido raramente é tão pavoroso quanto o medo que sentimos dele. Como dizem na série: “Não existe realidade. Existe apenas percepção. A maneira como vemos as coisas. A maneira como nos vemos. Então, é assim que nos vemos”. “Você não pode viver para outras pessoas. Você tem que ser verdadeiro consigo mesmo”. “Este mundo é um lugar lindo e horrível. É espetacular”.
* Nascido em Governador Valadares e atualmente residente em Belo Horizonte. Sua formação acadêmica se traduz numa ampla experiência no setor cultural. É escritor, crítico e comentarista cinematográfico e literário.
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