O Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) em Minas Gerais, ajuizou ações civis públicas contra as empresas Viação Cometa, Viação Gontijo, Expresso Gardênia e Viação Caiçara, para que elas respeitem a legislação que garante a idosos, pessoas com deficiência e jovens de baixa renda a disponibilização de duas passagens gratuitas por veículo, ou com desconto de 50% para as passagens que excederem as vagas gratuitas, no transporte interestadual.
Tal gratuidade está prevista no art. 40 da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), no art. 1º da Lei 8.899/1994 (Lei do passe livre para pessoas com deficiência) e no art. 32 da Lei 12.852/2013 (Estatuto da Juventude).
O MPF defende que tais normas preveem a gratuidade das passagens ou a concessão de desconto tarifário em todas as linhas e horários explorados pelas empresas, independentemente das características dos veículos utilizados na prestação do serviço ou do dia da viagem.
O problema é que o alcance das normas foi reduzido indevidamente, por meio da criação de diversos requisitos e condições, como a de que a gratuidade somente pode acontecer para viagens em ônibus convencionais, excluindo-se os veículos executivos, leitos e semileitos.
“Tal critério revela verdadeiro contrassenso, na medida em que quanto melhor e mais equipados os veículos, menor é a obrigação da empresa de conceder benefícios tarifários a pessoas com deficiência, idosos e jovens de baixa renda. Por outro lado, tais restrições acabam obrigando as pessoas destinatárias dos benefícios legais a pagarem quantias pelas quais, por lei, estão desobrigadas”, afirma o procurador da República Helder Magno da Silva.
Restrições indevidas
A investigação do MPF teve início a partir de inúmeras representações feitas por cidadãos que tiveram seus direitos negados.
A Viação Caiçara opera 112 linhas no sistema de transporte rodoviário regular interestadual de passageiros, fazendo a ligação Belo Horizonte (MG)-Campos dos Goytacazes (RJ) por meio de três linhas, duas delas convencionais e uma executiva. No entanto, de acordo com denúncia feita por um cidadão, a empresa alega que não possui mais veículos convencionais, porque todos eles foram substituídos por serviço executivo. De todo modo, para a concessão das passagens gratuitas a idosos, a Viação Caiçara alegou ao cliente que elas deveriam ser requeridas com 30 ou 45 dias de antecedência e somente para viagens feitas às quartas-feiras.
A Viação Cometa, que transporta passageiros entre todos os estados das regiões Sudeste e Sul do Brasil, e a Gontijo, que atua nos estados de São Paulo e MG, também impõem aos idosos as mesmas exigências: gratuidade apenas em ônibus convencionais, unicamente para viagens feitas às quartas-feiras e concessão limitada a duas passagens por semana.
No caso da Expresso Gardênia, que transporta passageiros entre Minas Gerais e São Paulo, uma cidadã denunciou ao MPF que, para conseguir a passagem, os idosos precisam ir ao guichê seis dias antes da viagem, chegar com oito horas antecipadas da partida do ônibus e, ainda, ficar em frente à cabine de venda, para que o funcionário saiba que estão no local.
Regulamentações nulas
Em contato com a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), órgão federal responsável pela fiscalização do serviço de transporte de passageiros, o MPF recebeu dados da Ouvidoria da Agência com dezenas de registros de reclamações e de autuações lavradas por seus fiscais. Com relação à Viação Gontijo, porém, a agência reguladora informou que, a despeito das reclamações, encontra-se impedida de fiscalizar a empresa, devido a uma decisão judicial que proibiu a ANTT de multar a empresa pelas infrações previstas na Resolução ANTT nº 233/2003.
“O que percebemos durante a investigação é que uma série de atos administrativos, a propósito de regulamentar a legislação, acabaram por impor, de forma ilegal, condições que beneficiam as empresas e prejudicam o consumidor. Foi a Resolução 1.692/2006, da ANTT, por exemplo, que estabeleceu que somente as linhas do serviço convencional teriam obrigação de conceder as duas vagas gratuitas para idoso, o que é ilegal, pois tal condição não está posta na lei”, sustenta o procurador.
Além da Resolução 1.692/2006, o MPF cita a Resolução 5.063/2016, da ANTT, os Decretos Federais 8.537/15, 9.921/2019 e 3.691/2000 e a Portaria do Ministério dos Transportes nº 261, de 3 de dezembro de 2012.
“Todas essas regulamentações invadiram reserva legal, de forma a reduzir desarrazoadamente o alcance das leis, sendo, por isso, nulas”, explica Helder Magno. “Isso porque extrapolaram os comandos legislativos sobre o tema, criando restrição a direito não prevista na lei regulamentada, e esvaziando-a, ao ponto de praticamente inviabilizar a respectiva fruição. Não há, no art. 1º da Lei 899/94, nem no art. 40 da Lei 10.741/03, tampouco no art. 13 da Lei 12.852/2013, qualquer menção à característica do veículo utilizado na prestação do serviço. O texto legal é claro. Nele, inexiste vinculação dos benefícios tarifários a uma certa categoria de serviço”.
De acordo com as ações, “a interferência do Poder Executivo foi permitida apenas para explicitar como esses direitos seriam exercidos e não para impor limitações não previstas na lei. Ora, não se pode confundir permissão para fixar critérios de comprovação dos requisitos de fruição de um direito com autorização para restringi-lo.(…) Assim, os Decretos nº 3.691/00, 8.537/2015 e 9.921/2019 e a Resolução ANTT nº 4.770/15, ao estabelecerem limitações para a gratuidade, bem como o desconto sobre o valor das passagens somente ao serviço de transporte interestadual de passageiros prestado com veículos de características básicas, com ou sem sanitários (serviço convencional), extrapolaram flagrantemente os comandos legais, impondo uma restrição que a lei não havia estabelecido.”
Pedidos
Em todas as ações, o Ministério Público Federal pede que a Justiça Federal impeça as empresas de restringirem a fruição do direito à gratuidade (e também desconto, no caso de idosos e jovens) de passagens no transporte coletivo interestadual, devendo assegurar a concessão do passe livre às pessoas com deficiência, aos idosos e aos jovens de baixa renda em todos os veículos destinados ao transporte rodoviário interestadual, independentemente da categoria do serviço ofertado.
Pede-se, ainda, o reconhecimento da inconstitucionalidade, inconvencionalidade e ilegalidade das restrições estabelecidas no art. 1º do Decreto nº 3.691/2000, nos arts. 39 e 40 do Decreto nº 9.921/2019, no art. 13 do Decreto nº 8.537/2015 e no art. 33 da Resolução nº 4.770/2015 da ANTT, devendo as empresas ser impedidas de impor qualquer restrição aos benefícios legais com base em tais regulamentos.
As ações também pedem a condenação das empresas por danos morais coletivos e individuais decorrentes das reiteradas negativas de viabilização da fruição dos direitos pelas pessoas beneficiadas.