Recurso aponta a ocorrência das mesmas nulidades verificadas na decisão referente ao município de Baixo Guandu (ES) e novamente destaca que as indenizações ali fixadas sejam mantidas como parâmetros mínimos do que efetivamente será devido a cada atingido. Pedido é de que os pagamentos já iniciados não sejam interrompidos
O Ministério Público Federal (MPF) recorreu de mais uma decisão proferida pelo juiz substituto da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte nos autos da ação civil pública que trata do desastre do rompimento da barragem de Fundão, de propriedade da mineradora Samarco, empresa controlada pela Vale e BHP Billiton.
A nova decisão assemelha-se, no histórico e fundamentos, a uma anterior, relacionada aos atingidos do município de Baixo Guandu, no Espírito Santo. Desta vez, porém, o caso refere-se ao município de Naque, situado no Vale do rio Doce, região leste de Minas Gerais.
O recurso, inclusive, repete os argumentos do agravo apresentado no último dia 22, apontando a ocorrência de diversas e graves irregularidades, que, de acordo com a legislação brasileira, impõem a nulidade da decisão.
Os procuradores da República que integram a Força-Tarefa Rio Doce, no entanto, pedem que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ao decretar a nulidade dos atos processuais irregulares, conceda liminar determinando que a Fundação Renova e as empresas rés mantenham o pagamento da indenização fixada pelo Juízo a todos os atingidos que se habilitarem a esse recebimento.
Mas esse valor não poderá dar quitação definitiva dos débitos que as rés têm com os atingidos, devendo funcionar apenas como o piso mínimo das indenizações.
Na prática, o MPF deixa claro que não é contrário ao pagamento das indenizações, mas sim à obrigação imposta pelo Juízo Federal para que os atingidos deem quitação definitiva às empresas.
De acordo com o agravo, como os danos ainda não foram avaliados e mensurados da forma devida e definitiva, os atingidos podem ter direito a uma quantia muito maior do que a que estão recebendo neste momento. Outro questionamento diz respeito ao valor irrisório da indenização por danos morais, de apenas R$ 10 mil.
Lembrando que essa quantia é concedida rotineiramente a título de indenização por problemas como atrasos e cancelamentos de voos ou cobranças indevidas nas relações de consumo, e o MPF entende que os danos morais sofridos pelos atingidos nem de longe são comparáveis a tais situações. Além disso, a quantia foi fixada para quaisquer categorias de atingidos, indistintamente, como se todos estivessem em uma mesma situação.
Por isso, foi pedido que o TRF1 impeça as rés de exigir dos atingidos a assinatura de um Termo de Quitação Integral e Definitiva e de um termo de desistência de ações que tramitam em fórum estrangeiro, tornando sem efeitos jurídicos todos os que já tiverem sido assinados.
O MPF também considerou abusiva a exigência de que o atingido, para se cadastrar na plataforma on-line de pedido da indenização, seja obrigado a constituir advogado, o que, na prática, irá diminuir o valor das indenizações com o pagamento dos honorários.
A decisão judicial também acabou por impor extrema pressão sobre os atingidos, ao fixar prazo limite em 31 de outubro para que possam pleitear a indenização.
Histórico
Em Naque (MG), município de apenas seis mil habitantes, verificou-se o mesmo modus operandi dos fatos ocorridos em Baixo Guandu: em maio deste ano, já no contexto de isolamento social e crise econômica impostos pela pandemia, a mesma advogada capixaba orientou oito moradores de Naque a registrarem em cartório uma autointitulada “Comissão de Atingidos”. Em seguida, ela encaminhou e-mail à Secretaria do Juízo da 12ª Vara Federal solicitando o protocolo de uma “petição inicial” para tratar especificamente das indenizações aos atingidos daquela localidade.
O juiz substituto aceitou o pleito, reconheceu a legitimidade (extraordinária) formal e material da autointitulada “Comissão de Atingidos de Baixo Guandu” – constituída de forma contrária às determinações de acordo homologado pelo próprio Juízo da 12ª Vara Federal -, e intimou a Fundação Renova e as mineradoras acerca da petição.
Imediatamente, sem a costumeira protelação com que vêm agindo no caso, as rés não só evitaram questionar a ilegitimidade da comissão, como anunciaram o início de negociação com os atingidos e com sua representante legal.
Sem a juntada nos autos de quaisquer atos comprobatórios das tais reuniões de negociação, menos de um mês depois, em 5 de junho, a autointitulada Comissão de Atingidos peticionou ao Juízo dizendo que não tinham chegado a um acordo com as rés e pedindo a decretação de sigilo nos autos, para preservar a “segurança” de seus integrantes.
Naquele mesmo dia, de forma imediata, o Juízo atendeu o pedido, decretou o sigilo e intimou a Renova e as empresas a se manifestarem acerca das pretensões formuladas pelos atingidos.
No dia 20 de junho, as rés manifestaram-se no processo, concordando com o sigilo e requerendo que ele fosse estendido até o trânsito em julgado de eventual decisão. Na ocasião, ainda apresentaram contrapropostas, sugerindo a realização de audiência de tentativa de conciliação.
Em menos de 24 horas, a autointitulada Comissão apresentou sua contestação, e, no dia 9 de julho seguinte, o Juízo Federal proferiu decisão estabelecendo, entre outras, o valor das indenizações e a obrigatoriedade de representação por advogado, de dar quitação definitiva e assinar desistência de eventual ação em país estrangeiro.
E, novamente, embora não se tenha obtido êxito na suposta negociação coletiva entabulada pelas partes e mesmo tendo o juiz substituto da 12ª Vara Federal fixado matriz de danos com critérios e valores distintos daqueles propostos em suas manifestações, ainda assim as partes não opuseram qualquer recurso contra a decisão que, supostamente, não atendia ao que elas pleiteavam.
O agravo demonstra que todos os eventos e manifestações repetiram, na sequência e conteúdo, as mesmas ocorrências verificadas em Baixo Guandu, incluindo a ausência de intimação do Ministério Público Federal para atuar, como fiscal da lei, numa causa que envolve direitos coletivos, conforme obrigam os artigos 127 e 129, inciso IX, da Constituição Federal, os artigos 176, 177 e 178, inciso I, do Código de Processo Civil, e o artigo 5º, § 1º, da Lei 7.347/1985 (Lei de Ação Civil Pública).
Prejuízos
“Tanto o levantamento do sigilo quanto a oportunização de manifestação do MPF só ocorreram após a tomada de todas as decisões, inclusive dos embargos de declaração”, relata o agravo, destacando novamente que, também nesses autos, a decisão fixou requisitos e exigências que, ao invés de beneficiarem, prejudicam gravemente os atingidos.
Entre os prejuízos estão a exigência de que o atingido somente possa exercer seu direito por meio de uma plataforma on-line, criada e disponibilizada pela Fundação Renova e de que o faça obrigatoriamente por meio de advogados.
Para o MPF, ambas as exigências contrariam a legislação brasileira, sobretudo a obrigatoriedade da representação por advogado, pois a lei garante a dispensa de advogados em procedimentos extrajudiciais.
O terceiro prejuízo está na fixação do prazo (até 31.10.2020) para que os atingidos formulem seus pedidos junto à Fundação Renova.
Para o MPF, “Trata-se de exigência que viola flagrantemente o prazo prescricional de três anos previsto pelo inciso V do § 3º do artigo 206 do CC/02, que deve ser aplicado para a liquidação individual e consequente execução de título executivo judicial que trata de direito individual homogêneo, como é o caso da matriz de danos fixada pela decisão recorrida. Como consequência, resultou em ofensa ao Princípio da Tutela Jurisdicional (artigo 5º, XXXV, da CRFB/88) e ao Princípio da Eficiência (artigo 8º do CPC)”.
Por fim, o recurso ainda aponta a irregular exigência imposta pelo juiz de que o atingido, para ter direito à indenização, assine termo de desistência/renúncia de eventuais pretensões indenizatórias formuladas em ações ajuizadas em países estrangeiros.
Ressaltando que não existe, nos autos, “qualquer pretensão formulada pelas partes (‘Comissão’, Fundação Renova, Samarco, Vale e BHP) acerca da necessidade de desistência/renúncia de ação coletiva ajuizada no estrangeiro, não tendo sido a questão sequer trazida de ofício pelo juízo para debate”.
O MPF sustenta que, ainda “que tivesse sido requerida e debatida, essa condição jamais poderia ser deferida, pelo simples fato de que, nos termos literais do artigo 24 do CPC, não existe litispendência internacional. A pendência de processo em outra jurisdição é questão absolutamente irrelevante para o andamento de ação no Brasil”.
Portanto, a exigência criada pelo juiz federal, além de contrária ao ordenamento jurídico brasileiro, prejudica os interesses dos atingidos, que possuem o direito de ajuizar ações individuais e coletivas, nacionais e estrangeiras, simultaneamente, sendo que eventual pagamento em duplicidade deve ser resolvido no momento do desembolso.