GOVERNADOR VALADARES – O som do silêncio é ensurdecedor. O corpo carrega marcas de feridas que não cicatrizam a dor causada na alma. No espelho, o que se vê é reflexo do eco de uma mente barulhenta que tenta conter os gritos de socorro. Nessa frequência as batidas aceleradas do coração se tornam um ritmo intenso de percussão sem compasso, em desordem. Entre a ansiedade e a falta de ar, à medida que a idade passa, os tons graves de ameaça têm no timbre a potência da gravidade de se fazer calar a voz de uma mulher vítima de violência doméstica. Até que o silêncio de uma inocente é rompido.
A PRIMEIRA VOZ
Em 1983, após anos de abuso, uma biofarmacêutica cearense passou por duas tentativas de homicídio por parte de seu marido. Marco Antonio atirou nas costas dela enquanto dormia, deixando-a paraplégica. Na segunda vez, ele tentou eletrocutá-la durante um banho.
Mas somente em 1991, oito anos após os crimes de violência, Marco Antonio enfrentou seu primeiro julgamento. Embora tenha sido sentenciado a 15 anos de prisão, ele conseguiu recorrer e saiu em liberdade. Cinco anos mais tarde, em 1996, Marco Antônio foi julgado pela segunda vez e condenado a 10 anos e seis meses de prisão por crimes de violência contra Maria da Penha Maia Fernandes.
O caso Maria da Penha não só revelou a recorrência das agressões contra mulheres, mas também expôs a impunidade que muitas vezes acompanha esses crimes. Na época, o estado brasileiro oferecia pouquíssimo suporte às vítimas.
Lei Maria da Penha
Depois de anos lutando para que a sua voz e a de muitas outras mulheres pudessem ser ouvidas, Maria da Penha viu no dia 7 de agosto de 2006 o sancionamento da Lei nº 11.340, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha. Essa legislação representou uma guinada na forma como a violência doméstica era percebida e tratada no país.
Entre os avanços no enfrentamento da causa estão a de estabelecer as formas da violência doméstica contra a mulher como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral; permitir prender o agressor em flagrante sempre que houver qualquer das formas de violência doméstica contra a mulher; o juiz conceder, no prazo de 48 horas, medidas protetivas de urgência e também decretar a prisão preventiva quando houver riscos à integridade física ou psicológica da mulher.
Outras vozes pedem socorro
Era madrugada de segunda-feira, por volta de 1h40 da manhã, quando o telefone de emergência da Polícia Militar tocou. Do outro lado da linha estava Maria (*), uma mulher de 50 anos que na ligação fazia um pedido de hambúrguer. O que para muitos poderia ser simplesmente um trote de mau gosto, na verdade se tratava de um pedido de socorro.
Naquela noite Maria contou à polícia que foi enforcada e agredida pelo marido, de 49 anos, com socos no estômago; ameaçada com um facão e mantida presa em casa. As agressões aconteciam com frequência e tinham se intensificado nos últimos dias, até o momento em que ela encontrou coragem para fazer a denúncia à polícia. Maria contou que foram ao menos 14 anos vivendo com o seu agressor. Mais de uma década em silêncio sendo vítima de violência doméstica.
Minutos depois da ligação, os policiais chegaram até a casa de Maria e prenderam o homem de 49 anos. Contudo no momento da prisão ele disse aos militares que não ficaria preso por muito tempo e que tudo poderia acontecer de novo quando saísse.
Esse caso foi noticiado pelo DRD no dia 17 de julho de 2023, em Valadares. Nesse mesmo mês inúmeros outros casos semelhantes estiveram entre as notícias do nosso site: um homem foi preso suspeito de agredir e estuprar a mulher com quem ele era casado há 7 anos; uma mulher foi agredida pelo companheiro por não ter cozinhado carne para ele; uma senhora de 77 anos foi agredida pelo próprio filho, que apresentava sinais de embriaguez; outra foi agredida porque o marido não gostou do corte do cabelo. Sobre os casos mencionados, a Polícia Civil informou que “as investigações de crimes contra a mulher vítima de violência doméstica e familiar tramitam em sigilo”.
Dados da Polícia Civil
De acordo com a Polícia Civil, em Valadares foram registrados até junho de 2023 mais de mil (1.112) casos de violência doméstica contra mulheres. Os números só reforçam que há muitas ‘Marias’ que ainda são reféns desse tipo de violência. “A violência contra a mulher é um fenômeno social que acomete, indistintamente, todas as classes e condições econômicas”, informa a delegada Carolina Bomfim, da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher de Governador Valadares.
Mais de duas décadas depois do surgimento da Lei Maria da Penha o enfrentamento à ‘cultura’ de violência contra mulher ainda segue a “passos de formiga e sem vontade”.
Muitas vozes ficam abafadas ao longo do caminho, mesmo depois da quebra do silêncio. Afinal, o que vem depois da denúncia? Na segunda parte da reportagem sobre o Agosto Lilás, mês de enfrentamento à violência doméstica contra a mulher, vamos falar sobre os amparos legais que a vítima pode recorrer.
Atenção! Se você sofre ou conhece alguém que vive em uma situação de violência doméstica, denuncie. O telefone é 180. Um número seguro que mantém o seu anonimato.
(*) Nome fictício