Depois de ficar seis meses preso e conseguir provar sua inocência, o pedreiro Raphael Teixeira Inácio, 27, acreditou que poderia colocar uma pedra sobre esse passado difícil e retomar os sonhos interrompidos.
Talvez isso tivesse sido mais fácil se o objetivo dele não fosse ser policial em uma instituição reconhecida pelo rigor na seleção e que investiga até debaixo de pedras o passado dos candidatos.
A luta de Inácio para se tornar soldado na Polícia Militar de São Paulo vem sendo travada desde o final de 2019 nos tribunais, quando ele foi barrado no concurso pela primeira vez e se tornou um dos principais assuntos entre os oficiais da corporação.
Até agora, os magistrados têm sido favoráveis ao pedreiro, o que preocupa integrantes da PM paulista, não pelo caso específico de Inácio, mas por isso ser visto como um precedente perigoso contra o esforço da corporação de evitar que pessoas suspeitas tenham acesso ao treinamento de policiais.
No final de 2019, a PM reprovou o pedreiro em concurso na fase de investigação social por causa da passagem criminal, conforme documentos juntados ao processo.
O candidato contratou um advogado e, ao acionar a Justiça, ouviu do governo paulista que foi reprovado porque, nos documentos de inscrição, ele teria omitido essa passagem criminal.
Os advogados apresentaram à Justiça, porém, documentos que mostram que o candidato citou, sim, a passagem e ainda apresentou um relatório detalhado sobre sua inocência.
O magistrado de primeira instância não aceitou esses argumentos, mas o Tribunal de Justiça concordou com a defesa e mandou que ele fosse aprovado no concurso. Essa decisão não pode mais ser contestada.
Depois de fazer a primeira fase do curso, ele foi desligado por desempenho. Recebeu número muito grande de repreensões de superiores e, assim, não atingiu a média necessária no quesito nota de conduta. A avaliação dele foi de 3,75, segundo a corporação, abaixo da nota 5, a mínima necessária.
Para o advogado Ronaldo Dias Gonçalves, defensor de Inácio, essa foi a forma de a corporação expurgá-lo por meio administrativo, já que foi derrotada na Justiça.
Inácio, então, conseguiu uma liminar para prosseguir no segundo módulo do curso.
“Ele foi para Ribeirão Preto com a pecha de ladrão, mesmo tendo sido absolvido. E lá um sargento pegou no pé dele, disse abertamente que ele não iria se formar. E disse: ‘Você vai pedir para sair’. Como no [filme] Tropa de Elite”, disse o advogado.
A forma de fazer o pedreiro “pedir para sair” foi por meio de uma série de anotações em seu prontuário. Na escola de soldados, esse tipo de anotação é chamada de “chequinho”. Cada anotação por alguma infração leve, como estar com a bota suja, barba por fazer ou chegar atrasado a algum compromisso, é passível de um “chequinho” que vai para a “conta” do aluno.
Os “chequinhos” acumulados podem levar, por exemplo, à suspensão de folgas nos finais de semana e até ao desligamento do curso, como ocorreu com Inácio.
“Ele chegou a ter mais de cem chequinhos, tudo com uma finalidade. Chegou ao final do curso, foi desligado em razão da quantidade absurda de chequinhos. ‘Você não tem perfil de policial’, disseram. Eles conseguiram, com isso, expurgá-lo da PM. Não conseguiram pela via judicial e foram por esse caminho. Foi quando ele nos procurou. Eu disse: ‘eu sei que está acontecendo'”, afirmou o defensor.
O juiz Luís Gustavo da Silva Pires, da 4ª Vara do Juizado Especial da Fazenda Pública da Capital, concordou com o pedido da defesa. Ele considerou haver, de fato, uma discrepância entre a decisão da PM de eliminá-lo e os elogios feitos anteriormente pela própria corporação ao desempenho de Inácio.
A ocorrência policial que manchou o currículo de Inácio ocorreu na madrugada de 14 de março de 2017, quando uma mulher de 70 anos, da cidade de Itapagipe (MG), foi rendida por criminosos armados no interior de uma casa lotérica. Foram levados dela R$ 21 mil e joias.
De acordo com uma testemunha, quatro criminosos fugiram do local em um Vectra prata. Inácio e dois amigos foram presos momentos depois na cidade vizinha de Frutal, depois de passarem batido por um bloqueio feito pela Polícia Rodoviária. Conforme disse à juíza, o policial estava apenas com uma lanterna no meio da pista e Inácio pensou que se tratasse de um assalto.
Mesmo em um veículo diferente dos criminosos, um Gol preto, sem armas nem o dinheiro do roubo, a polícia os prendeu. A própria vítima não reconheceu Inácio e seus amigos na delegacia, a não ser por uma blusa xadrez, azul e branca, usada por um colega do pedreiro. Isso foi suficiente para mandá-lo para a prisão.
Na Justiça, a vítima voltou a dizer que não reconhecia nenhum dos suspeitos. Sem nenhuma prova obtida contra o rapaz nos seis meses que durou o processo, a Justiça absolveu todos e mandou soltá-los. A absolvição ocorreu também a pedido do Ministério Público.
Como a absolvição se deu por falta de provas, a dúvida sobre a culpa de Inácio continua viva entre os policiais paulistas, mesmo que não haja em sua sua ficha nenhum outro fato desabonador.
Procurada, a PM paulista disse que “o candidato incorreu em reprovação em uma das etapas do concurso, previstas no artigo 4º, contudo, após recorrer judicialmente do ato, obteve decisão favorável de reintegração pelo Poder Judiciário.”
A nova ação movida por Inácio em junho ainda terá o mérito analisado. O edital de concurso da PM, em vigor desde de julho de 2016, diz em em seu artigo 11 que o candidato não pode ter sido condenado, nos últimos cinco anos, “em processo criminal transitado em julgado, contado o prazo a partir da data do cumprimento da pena”.
Entretanto, o candidato a policial militar deve ser aprovado em sete etapas previstas no edital, entre elas a da conduta social, quando é analisada a reputação e idoneidade, “objetivando averiguar fatos atuais e pregressos relativos ao candidato em seus aspectos social, moral, profissional e escolar, quanto à compatibilidade para o exercício do cargo”, diz trecho do edital.
Para o juiz Ronaldo João Roth, professor na Academia do Barro Branco, escola de oficiais da PM de São Paulo, a PM não pode excluir do concurso candidato absolvido pela Justiça.
“O fato de ser processado, desde que o processo seja resolvido judicialmente com a absolvição, não é motivo para impedimento no concurso”, diz. Para ele, o impedimento existe apenas quando não há decisão final sobre o caso.
Ainda segundo o magistrado, o superior que perseguir um candidato, contrariando decisão judicial, pode ser responsabilizado. “O fato [de persegui-lo] vai constituir crime por parte do perseguidor e até improbidade administrativa”, disse o magistrado da 1ª Auditoria do Tribunal de Justiça Militar.
Para a advogada Flávia Artilheiro, especialista em direito militar, a etapa da investigação social costuma ser extremamente rigorosa, e os antecedentes criminais “poderão, sim, motivar a exclusão do candidato, a depender da natureza da condenação”.
“O que não faria sentido, sob a ótica constitucional, seria impedir de prestar concurso, simplesmente pela condenação, cidadão que, por exemplo, houvesse se envolvido em um acidente de trânsito e provocado lesão corporal culposa (sem intenção) a alguém. Cada caso é um caso, e o administrador público deverá sempre agir com razoabilidade”, afirmou.
O advogado de Inácio diz que o pedreiro disse a ele que vai lutar até o fim. “Ele quer ser policial. É o sonho da vida dele.”
“Ele foi preso injustamente, mas aquilo já passou. Continuar a todo momento tendo um dedo apontado para ele por alguém é pior do que se ele fosse condenado. Se ele der sorte de ir para um batalhão que tenha um comandante muito humano, que não deixe fazerem covardia, terá alguma chance. Ou vai comer o pão que o diabo amassou”, afirma Gonçalves. SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) -ROGÉRIO PAGNAN