
Dado o fato de que este artigo deve sair no Domingo de Páscoa, para muitos o ápice da Semana Santa, resolvi abraçar a temática do feriado na minha indicação semanal.
Não sou uma pessoa religiosa ou espiritual, mas, dados meus conhecimentos do cânone cristão, entendo que essa é uma data cujo o tema é a alegria. A quaresma em si é um tempo de penitência e preparação para o calvário e sacrifício que virá na Sexta-feira da Paixão, mas, dada a ressurreição que se passa no Sábado de Aleluia, o Domingo de Páscoa é um dia de alegria.
É claro que existe uma teoria medieval de que Deus não ri, inclusive o mistério do livro “O Nome da Rosa” é todo baseado nessa premissa. E sei que há alguns conservadores que gostam de se apegar a essa ideia de um Deus que não apenas é desprovido de humor, como seria contra ele. Mas, como eu mesmo me recuso a acreditar em uma divindade tão cruel a ponto de criar o riso e o prazer só para nomeá-lo como um pecado, acho que uma comédia seria uma excelente recomendação para a ocasião.
Vou admitir que a primeira coisa que me passou à cabeça foi “Life of Brian”, o hilário filme de 1979 do Monty Python, lendário grupo de comédia non-sense inglês. Mas resolvi não fazê-lo, curiosamente não pelos motivos que se possa esperar: sim, “Life of Brian” é até hoje considerado por alguns como um filme controverso, dada sua temática, mas não foi por isso que resolvi não escrever sobre ele, já que considero esse um dos pontos positivos dele; também não foi a falta de qualidade que me fez não escrever sobre ele, afinal, o filme é ótimo (inclusive, ser controverso e hilário é uma marca da obra do Monty Python, um marco de excelência e uma das grandes referências da comédia mundial); também não foi nem uma dificuldade de acesso (tendo em vista que estou sempre tentando trazer coisas de acesso relativamente fácil), já que ele se encontra disponível na Netflix com outras obras do Monty Python. Foi apenas o fato de que na semana passada eu já fiz uma ampla seleção de obras audiovisuais disponíveis na Netflix, então resolvi variar um pouco.
A segunda coisa que me cruzou a mente foi o filme “Dogma”, de 1999, mas eu achei que ia cair no mesmo lugar de indicar “Life of Brian”. Também pensei no maravilhoso “O Auto da Compadecida”, uma das melhores coisas já produzidas pelo audiovisual brasileiro, mas imagino que todo mundo já tenha visto (e se você é a rara exceção, devia remediar isso imediatamente). Então resolvi mudar a mídia e falar de um livro: “Good Omens”, ou seu nome em português “Belas Maldições”, escrito em 1990 pelos autores Terry Pratchett e Neil Gaiman.
Terry Pratchett é um autor inglês, mais conhecido pela sua lendária série “Discoworld”, que contem 41 livros. Sua obra é notória por seu senso de humor satírico, ácido e por ser dono de uma inteligência ímpar.
Já Neil Gamian é mais familiar para os leitores/espectadores brasileiros. Ele é conhecido como autor de vários quadrinhos (sendo o principal a série “Sandman”, considerado um dos quadrinhos mais influentes do século XX) e novelas, muitas das quais foram adaptadas para o cinema (como “Coraline” ou “Stardust”). Há atualmente uma série sendo produzida sobre um de seus livros, “Deuses Americanos”.
E foi da colaboração desses premiados autores que surgiu “Belas Maldições”. No livro, o famoso apocalipse bíblico, em que as forças celestiais e infernais terão uma última grande batalha pelo destino das almas, se aproxima rapidamente; mas um anjo e um demônio, ambos os responsáveis de seu lado por viver entre os humanos e manter um olhar mais vigilante sobre eles, se veem tão apegados à terra e à humanidade, que decidem tentar evitar o apocalipse. Para isso, eles formam uma aliança improvável e, ao longo da história, vão reunindo mais companheiros à sua causa.
A premissa pode não parecer tão original assim (e não acredito que seja, ou talvez até tenha sido na época, já que o livro é de 1990), mas a escrita mais que compensa por isso.
O trabalho conjunto de Prachett e Gaiman é de uma sagacidade ímpar, de um humor fantástico e recheado de personagens fantásticos (em mais de um sentido).
Em 2019 o livro foi adaptado em uma minissérie de 6 episódios (cada um com uma média de 58 minutos). A série produzida pela Amazon é bastante fiel ao livro (o que é muito raro) e tem um elenco soberbamente bem escolhido, principalmente a dupla de protagonistas: David Tennant faz o demônio Crowley e Michael Sheen o anjo Aziraphale. Esses dois têm uma química brilhante que faz todas as cenas entre eles serem uma em que você realmente acredita.
Apesar de a série ser por si só excelente, uma das melhores coisas que saiu dela foi a “controvérsia” entre grupos conservadores dos EUA. Esses grupos mandaram uma petição para a Netflix reclamando da série. Dentre as reclamações, além da temática como um todo, a principal era que Deus (um personagem que aparece apenas como narrador, sendo ouvido, mas nunca visto) era interpretado por uma mulher (aparentemente é um pecado mortal na cabeça dessas pessoas que Deus seja uma mulher). As outras reclamações seguiam essa linha. E eles encerravam a petição exigindo o cancelamento da série. O que na verdade transforma essa petição em uma piada pronta por um grande fator: A petição foi mandada para a Netflix, mesmo a minissérie tendo sido produzida pela Amazon. Isso levou a uma hilária troca de piadas entre os perfis nas redes sociais das duas empresas. A Netflix publicou, ironicamente, que “nós prometemos que não vamos fazer mais” e a Amazon respondeu em tom de piada com “Ei, Netflix, a gente promete cancelar Stranger Things se vocês cancelarem Good Omens”. Houve ainda muitas outras trocas de mensagem jocosas de ambas as partes e outros internautas. Até mesmo o próprio Neil Gaiman entrou na brincadeira. Essa petição foi motivo de piada por umas duas semanas nas redes sociais e, ao fim e ao cabo, só ajudou a divulgar ainda mais a série.
“Good Omens” (a série) é um grande sucesso de público e crítica, até mesmo eu admito que sou um grande fã. Porém, como sempre, acho que vale mais apena ler o livro. Pensando bem, nesse caso específico, acho que os dois valem a pena (talvez eu recomendasse ver a minissérie e depois ler o livro, mas isso fica ao seu cargo).
Eu realmente recomendo muito que vocês deem uma chance para essa obra. Creio que, como eu, no final vocês vão achar essa uma experiência (com o perdão do trocadilho) divina.
(*) Nascido em Governador Valadares e atualmente residente em Belo Horizonte. Sua formação acadêmica se traduz numa ampla experiência no setor cultural. É escritor, crítico e comentarista cinematográfico e literário.
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