Lupin.
A primeira vez que li esse nome foi em uma critica em que o protagonista do filme “To Catch a Thief” (conhecido no Brasil como “O Ladrão de Casaca”), dirigido por Alfred Hitchcock, era comparado a Arsène Lupin. O filme, inclusive (mesmo não sendo um dos “clássicos Hitchcock”), é bem divertido.
Mais tarde trombei novamente com o nome ao descobrir Lupin III. É uma série de mangás que virou anime e vários filmes, criada por Monkey Punch (o pseudônimo do artista japonês Kazuhiko Katō). A série segue as aventuras do neto de Arsène Lupin, chamado Lupin III, que é o maior ladrão do mundo. Além do próprio Lupin III, você tem seus comparsas (Jinge, Goemon e Fujiko) e o detetive da INTERPOL (Inspetor Zenigata), que fez de sua meta de vida a captura de Lupin III, sendo que todos os quatro trazem em si referências a outros personagens clássicos. O primeiro anime foi lançado em 1971 (está fazendo 50 anos este ano) e contou com nomes que viriam a se tornar lendas, como (por exemplo) ninguém menos que Hayao Miyazaki (o mesmo que mais tarde viria a fundar o lendário Studio Gibli). Miyazaki, inclusive, faria sua estreia como diretor graças a Lupin III: ele foi o diretor responsável por um dos primeiros longas-metragens do personagem (e, na minha opinião, o melhor até hoje) chamado “Rupan Sansei: Kariosutoro no Shiro” (chamado no Brasil de “O Castelo de Cagliostro”). A franquia é tão famosa que, no Japão, desde seu lançamento como anime, quase todo ano sai material novo: tendo até então cinco séries, um spin-off, dois filmes live-action e (pela minha conta) mais de 30 filmes de animação, sendo que o último (“Rupan Sansei Za Fāsuto”, no Brasil chamado de “Lupin III: O Primeiro”) saiu em 2019 já postumamente ao falecimento do próprio Monkey Punch. Como qualquer franquia com mais de 5 décadas de existência, tem muito em Lupin III que eu não gosto; mas, mesmo assim, via de regra, suas aventuras são ótimas, um misto excelente de comédia e aventura, e até eu, que assumidamente não sou um grande apreciador de mangá/anime, me tornei fã (sendo que possivelmente é meu mangá/anime preferido).
Mais recentemente, o nome Lupin reapareceu no meu radar quando a Netflix lançou uma série francesa com esse nome. Nela, o protagonista Assane Diop se inspira no modus operandi de Arsène Lupin (seu personagem preferido quando criança) para tentar limpar o nome de seu falecido pai. A série, inclusive (pelo menos o que já saiu dela até agora), é realmente muito boa.
E nesse tempo todo, em todas essas interações, eu sabia que Arsène Lupin era um personagem que aparecia nos contos de Maurice Leblanc. Sabia que ele é considerado o arquétipo do “ladrão de casaca”. E que, inclusive, alguns o chamavam de “a resposta francesa a Sherlock Holmes”. Sabia disso tudo, mas nunca tinha conseguido por minhas mãos nos contos originais de Leblanc para tirar minhas próprias conclusões. É claro que, frente a todas essas descrições e todo o maravilhoso legado que vinha do nome Lupin, eu tinha grandes expectativas para com eles.
Graças à série da Netflix, eu finalmente consegui: nela, Assane Diop tem uma cópia do livro que foi o último presente que seu pai lhe deu. Com o sucesso da série, esse mesmo livro (inclusive com a capa fazendo alusão à do livro possuído por Diop) chegou às livrarias. Então, finalmente consegui acesso aos contos.
Só para ficar decepcionado.
Eu não li todos os contos, mas os que li ficaram profundamente aquém das expectativas. Eu sei, eu sei, não devia criar expectativas (e sou o único responsável por elas), mas, nesse caso, para mim, foi impossível não criá-las: tudo que via relacionado a Lupin era de grande qualidade. Então, porque os contos que deram origem a tudo não seriam? Afinal, não eram eles “a resposta francesa a Sherlock Holmes”?
Se esse é o caso, os franceses perderam essa discussão por muito. Eu me atreveria a dizer que a comparação com o lendário detetive criado por Sir Arthur Conan Doyle foi o pior dos tiros no pé dado por Leblanc. E sim, se não foi ele que começou a comparação, pelo menos fez de tudo para reforçá-la, inclusive chegou a escrever “Lupin Versus Sherlock Holmes” (que, depois de ser processado por direitos autorais, afinal estava usando o personagem de Conan Doyle sem autorização, mudou o nome para o nem um pouco discreto “Lupin Versus Herlock Sholmes”).
E, verdade seja dita, a escrita de Leblanc fica muito aquém da de Conan Doyle. Falta em Lupin uma verossimilhança que Holmes nos passa com maestria, tanto em seus momentos brilhantes (onde nos guia, por meio de Watson, passo a passo em como fez algo) como em seus momentos de falha (sua dificuldade social, sua solidão, seus momentos obsessivos, seu abuso de substâncias químicas); Lupin por outra vez (pelo menos nos contos que li) é infalível em todas as áreas, suas habilidades beiram o sobre-humano, e, mesmo quando me explica como fez as coisas, eu não saio com aquela sensação de “realidade” que Sherlock sempre me passa.
Creio, inclusive, que a melhor arma que Conan Doyle tinha nessa batalha nem era o próprio Holmes, mas sim Watson. Enquanto os contos de Lupin que li ou são narrados em terceira pessoa ou pelo próprio Arsène (mesmo que às vezes esse fato seja muito fracamente disfarçado), Watson é um narrador impecável porque você acredita nele. Você acredita nos mistérios (sejam eles sobre o caso ou sobre a pessoa de Holmes), porque eles são misteriosos para Watson. E quando finalmente são explicados, você é levado a entender por meio do entendimento (muitas vezes didático) de Watson.
Lupin, por sua vez, tenta manter um ar de mistério (até mesmo em suas explicações). Para mim parece que o autor tinha uma ideia muito boa, mas não sabia cobrir todos os plot holes que ela criava. Acho que esse é o ponto todo: Leblanc tem ideias excelentes, mas lhe falta a habilidade com os detalhes e minúcias de cada faceta do “plano” ou “mistério” que ele trata; já na obra de Conan Doyle essa atenção ao detalhe é intrínseca à escrita que (junto ao excelente personagem que é Watson) faz a coisa toda ganhar vida.
E em uma nota muito pessoal, eu desteto o quanto Leblanc repete o nome “Arsène Lupin” em sua obra. Ele o repete (e normalmente assim “Arsène Lupin”, completo) pelo menos uma vez por frase, quando não mais. Eu percebo o que ele tenta fazer: transformar o nome em um título que é dito com reverência, como se o mero nome de Lupin fosse tudo que você precisa saber, que invocasse nos corações temor e/ou admiração. Quase como “Lord Voldermort” ou algo que valha. Mas, enquanto o vilão de Harry Potter faz isso muito bem, tendo seu nome usado com a devida parcimônia e escondido atrás de títulos como “Aquele Que Não Deve Ser Nomeado”, a repetição incessante do nome de Lupin só serve para desgastá-lo, matando a aura de mistério que ele tenta criar e ficando cansativo ainda nas primeiras páginas. Mas, como eu disse, esse é um ponto muito pessoal.
Eu sei que passei a última meia página falando mal dos contos de Leblanc, mas isso significa que estou dizendo que você não devia lê-los? Absolutamente, não. Na verdade, diria o contrário: leia Arsène Lupin. Nem que seja para tirar suas próprias conclusões. Eu mesmo vou me forçar a ler os que ainda faltam. Talvez só queira dizer que, pessoalmente, recomendaria ler os contos de Sherlock Holmes primeiro.
Além do mais, a importância literária de Lupin é inegável. Foi ele que popularizou a figura do “gentleman thief”, o “ladrão de casaca”, termo tão usado em várias mídias hoje em dia (como a Selina Kyle/Mulher-Gato nos HQ’s e Carmen Sandiego nos videogames), e com elementos que chegam até a figuras que são ladinas, mas não criminosas (como o próprio James Bond). Isso sem falar em suas maravilhosas influências diretas, que citei no começo dessa coluna.
Então, reitero minhas indicações: procure ler as aventuras de Sherlock Holmes, escritas por Sir Arthur Conan Doyle; assista à série “Lupin” que está na Netflix; procure conhecer a enorme franquia que é Lupin III, sendo a principal recomendação “O Castelo de Cagliostro”, o primeiro filme dirigido por Hayao Miyazaki; veja, inclusive, “To Catch a Thief”, dirigido por Alfred Hitchcock… E, sim, leia os contos de “Arsène Lupin”, escritos por Maurice Lebanc.
Essas são minhas indicações, nessa ordem.
Eu percebi que sempre tento acabar meus textos com alguma frase de efeito e/ou referência. Inclusive pensei em usar algo de algum dos Lupin para terminar essa coluna em questão (quem sabe até um trocadilho com “não se furtar a experiência, afinal estamos falando de um ladrão”), mas decidi não fazê-lo… Achei que, afinal, ceder a esse impulso séria muito obvio… Diria até que seria muito elementar (meu Caro Watson).
(*) Nascido em Governador Valadares e atualmente residente em Belo Horizonte. Sua formação acadêmica se traduz numa ampla experiência no setor cultural. É escritor, crítico e comentarista cinematográfico e literário.
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