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Little Richard, morto aos 87, abriu rota para o rock ser voz dos rebeldes e subversivos

por MARCO NOGUEIRA
da FOLHAPRESS

Little Richard não só fundou a base musical do rock’n’roll, ao acelerar e adicionar um tanto de selvageria ao rhythm and blues –ele também abriu caminho para que a nova música fosse a voz dos rebeldes, subversivos e desajustados. O cantor morreu neste sábado (9), aos 87 anos. A causa da morte é desconhecida.

Negro e bissexual, Richard incendiava plateias em que jovens negros e brancos dividiam o mesmo espaço. Ele se vestia e se maquiava como uma diva. Berrava a plenos pulmões letras de duplo sentido e embalava, com sua música frenética, uma dança considerada pornográfica na época —meados dos anos 1950, quando o assassinato sistemático de negros que desafiavam o “status quo” era uma realidade no sul dos Estados Unidos.

Foi justamente nesse sul –em Macon, no estado da Geórgia– que Richard Wayne Penniman nasceu em 5 de dezembro de 1932, numa família de 12 irmãos. Seu pai era diácono da igreja batista, o que não o impedia de traficar “moonshine” (uísque caseiro, sem passagem por barril) e manter uma taberna durante os anos da lei seca.

O garoto começou a desenvolver o talento musical no coro da igreja que a família frequentava. Aos 14 anos, em 1947, fez sua estreia nos palcos ao abrir —sem a autorização de ninguém— o concerto de Sister Rosetta Tharpe, uma cantora de música gospel. A plateia ovacionou o menino de voz forte e aguda, e Little Richard saiu do teatro com cachê no bolso.

Aos 15 anos, Penniman foi expulso de casa pelo pai, devido aos seus modos efeminados. No fim dos anos 1940 e no início da década seguinte, o rapaz trabalhou com toda espécie de charlatães no “vaudeville”, onde animou shows de horrores e se tornou ele mesmo uma espécie de aberração, ao tocar travestido para atrair plateias interessadas no bizarro. Também ampliou seus horizontes musicais, aprendendo a tocar piano e incorporando ao gospel o blues, o R&B e o boogie-woogie.

Foi no submundo do espetáculo restrito aos negros —o chamado “chitlin’ circuit”—que Little Richard fez amizade com Billy Wright, a fonte de inspiração para seus shows extravagantes. Conhecido como o “príncipe do blues”, Wright se apresentava em ternos coloridos, usava um enorme topete e bigode estreitíssimo.

O rumo da carreira de Penniman só viria a mudar em 1955, quando ele mandou uma fita demo para a gravadora Specialty, de Los Angeles. Chamado para gravar num estúdio em Nova Orleans, não empolgou o produtor Robert Blackwell até que eles, cansados das tentativas infrutíferas, saíram para beber juntos.

Foi no bar que Little Richard resolveu cantar “Tutti Frutti”, uma brincadeira dos tempos do vaudeville que começava com o grito “wop bop a loo bop a lop bom bom” e cuja letra dizia “tutti frutti/ good booty/ if it don’t fit/ don’t force it/ you can grease it/ make it easy”, ou “tutti frutti/ bunda boa/ se não couber/ não force/ você pode lubrificar/ para facilitar”. Blackwell sentiu ali o estalo que procurava e encomendou à compositora Dorothy Le Bostrie letras menos obscenas para a melodia.

Suavizada, “Tutti Frutti” foi gravada em só três tomadas e chegou ao mercado em novembro de 1955. Foi sucesso imediato nos Estados Unidos e no Reino Unido, atingindo o segundo lugar da parada de R&B da revista Billboard. “Long Tall Sally”, o próximo single, chegaria ao topo da mesma parada no início de 1956.

Naquele ano, Little Richard ainda emplacaria hits como “Lucille”, “Rip it Up”, “Ready Teddy” e “Slippin’ and Slidin'”. O garoto negro e efeminado da Geórgia havia se tornado um ídolo do mesmo quilate de Elvis Presley.

O sucesso de Little Richard com a juventude branca fez com que as casas de espetáculo, então exclusivamente brancas ou negras, passassem a admitir as duas comunidades num mesmo evento. Havia segregação —os brancos ocupavam a plateia e os negros, a galeria—, porém ela se desfazia no decorrer do show, quando os dois públicos se amontoavam em frente ao palco.

A histeria da audiência era semelhante à vista nos shows de Elvis. Durante uma apresentação em Baltimore, a polícia precisou intervir duas vezes –para evitar que adolescentes se atirassem do alto da galeria e para remover garotas que invadiram ao palco no afã de obter retalhos da roupa de Little Richard.

No mesmo concerto, uma mulher atirou sua calcinha em direção ao palco, levando dezenas de outras a repetir o gesto. O fenômeno irritava e desconcertava a classe dominante branca. Penniman, além de negro, era um homem de gestos exagerados que usava roupas coloridas e brilhantes, além de cobrir o rosto com pó de arroz.

“Eu usava a maquiagem para que os homens brancos não pensassem que eu estava atrás das garotas brancas”, disse o músico em uma entrevista de 1984 à revista americana Jet, destinada ao público afrodescendente. “Facilitava as coisas para mim e, além do mais, era colorido.”

Little Richard nunca empunhou a bandeira gay, mesmo se definindo como “pansexual” em relatos ao biógrafo Charles White, autor de “The Life and Times of Little Richard”, sem edição brasileira. De acordo com o livro, desde a puberdade o cantor se relacionava tanto com homens quanto com mulheres.

“Eu tinha namoradas —um monte de mulheres que me seguiam, viajavam comigo, ficavam comigo e dormiam comigo”, disse Penniman em 2000 à revista Jet. “Eu percebi que ser chamado de bicha me trazia fama —então que eles digam o que quiserem.”

Em 1957, a conversão ao cristianismo interrompeu subitamente a carreira de Little Richard. O anúncio de que abandonaria a música aconteceu no meio de uma turnê na Austrália. No voo entre Melbourne e Sydney, ele teria sentido que as turbinas do avião estavam sendo sustentadas por anjos. Voltou dez dias antes do previsto para os Estados Unidos —e o voo que o traria na agenda original caiu no oceano Pacífico.

Isso aumentou sua convicção de que deveria escutar o chamado divino. Ele se matriculou num curso de teologia no Alabama e passou a gravar só música gospel. Em 1959, se casou com Ernestine Campbell, a quem conhecera num congresso evangélico. O divórcio viria em 1963.

Little Richard voltou ao rock’n’roll em 1962, atraído pelo mercado europeu que então consumia avidamente a música americana de alguns anos antes. Em seus giros pela Europa, foi a atração principal de shows que tiveram a abertura de bandas locais iniciantes —os Beatles, de Liverpool, e os Rolling Stones, de Londres. Em 1965, emplacou na parada de R&B a balada soul “I Don’t Know What You’ve Got (But It’s Got Me)”. A banda que o acompanhava, os Upsetters, tinha Billy Preston no órgão e Jimi Hendrix na guitarra.

No final dos anos 1960, Little Richard passou a se apresentar nos cassinos de Las Vegas. Na década seguinte, depois de se diplomar pastor da igreja adventista, ele enfrentou sérios problemas com cocaína. “Eu cheirava tanto que deveriam me chamar Little Cocaine”, afirmou na biografia escrita por Charles White.

Nas décadas posteriores, Little Richard oscilou entre a religião, shows ocasionais e pontas no cinema e na TV –apareceu no filme “Um Vagabundo na Alta Roda”, com Nick Nolte, e em episódios de “Miami Vice” e “SOS Malibu”. Em 2006, celebrou a união de 20 casais numa única cerimônia de casamento.

O trabalho de Little Richard afetou praticamente tudo o que veio depois dele na música pop –artistas de estilos diversos, como o blues rock (Creedence Clearwater Revival), o soul (James Brown), o hard rock (AC/DC) e até a MPB (Raul Seixas), foram influenciados por sua música e estilo. O cantor Prince era tão parecido com Little Richard que o roqueiro veterano o queria para interpretar seu papel numa telebiografia feita para o canal NBC em 2000.

Little Richard teve só um filho. Danny Jones, adotado com um ano durante o casamento com Ernestine Campbell. Jones trabalhou como guarda-costas do pai.

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