O primeiro código penal do Brasil independente, elaborado em 1830, época de D. Pedro I, fazia distinção entre os escravizados negros e os cidadãos livres na hora de ditar parte das punições, ainda que os crimes cometidos fossem os mesmos. Não havia a plena isonomia, isto é, a igualdade de todos perante a lei.
No próximo dia 16, a criação do Código Criminal do Império completará 190 anos. Ao longo das seis décadas seguintes, até a Proclamação da República, foi essa lei que buscou moldar o comportamento dos brasileiros na vida em sociedade.
O Código Criminal permitia que os juízes sentenciassem os cidadãos livres a uma dezena de penas diferentes, a depender do crime: morte na forca, galés (trabalhos públicos forçados, com os indivíduos acorrentados uns aos outros), prisão com ou sem trabalho, banimento (expulsão definitiva do Brasil), degredo (mudança para cidade determinada na sentença), desterro (expulsão da cidade onde se deu o crime), suspensão ou demissão de emprego público e pagamento de multa. A prisão podia ser perpétua ou temporária, assim como as galés, o degredo e o desterro.
Dessa extensa lista de penas aplicáveis aos cidadãos livres, sobre os escravizados só recaíam as duas mais terríveis: morte e galés. Caso recebessem do tribunal uma sentença mais branda, como prisão ou multa, o Código Criminal de 1830 ordenava a sua conversão automática em açoites — pena proibida para os livres. Assim, havia apenas três castigos legais possíveis para os escravizados.
A punição não podia exceder 50 chicotadas diárias. Caso o juiz fixasse um total de 200 açoites, por exemplo, a pena teria que ser fracionada em pelo menos quatro dias. Uma vez castigados pelas autoridades, os escravizados de origem africana eram devolvidos aos seus senhores e ainda tinham que passar uma temporada acorrentados.
As chibatas eram aplicadas pelo poder público apesar de a Constituição do Império ditar expressamente que no território nacional estavam “abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis”.
Antes de ser assinado por D. Pedro I e entrar em vigor, o Código Criminal foi discutido, modificado e aprovado pelo Parlamento. Documentos da época guardados hoje nos Arquivos do Senado e da Câmara, em Brasília, mostram que a existência da escravidão no Brasil foi um ponto insistentemente lembrado pelos parlamentares, em especial quando debateram a necessidade de o Brasil ter ou não a pena de morte.
O deputado Francisco de Paula Sousa (SP) discursou a favor da forca:
— O sistema de escravidão no Brasil é certamente péssimo. Porém, havendo entre nós muitos escravos, são precisas leis fortes, terríveis, para conter essa gente bárbara. Quem duvida que, tendo o Brasil 3 milhões de gente livre, incluídos ambos os sexos e todas as idades, esse número não chegue para arrostar [enfrentar] 2 milhões de escravos, todos ou quase todos capazes de pegar em armas? O que, senão o terror da morte, fará conter essa gente imoral nos seus limites?
Para Sousa, a mera prisão não seria uma punição pesada o suficiente para os escravizados:
— Excluindo-se do código a pena de morte e as galés, resta a prisão. Ora, o escravo que vive vergado sob o peso dos trabalhos terá porventura horror a encerrar-se em uma prisão, onde poderá entregar-se à ociosidade e à embriaguez, paixões favoritas dos escravos? Ele julgará antes um prêmio que o incitará ao crime. Citarei um exemplo mui frisante. Na Filadélfia no tempo do inverno, a gente desarranjada cometia pequenos crimes para ser recolhida à casa de correção. Foi necessário tornar a prisão mais incômoda, acrescentando-lhe trabalhos pesados.
Contrário à pena capital, o deputado Antônio Pereira Rebouças (BA) — pai do futuro abolicionista André Rebouças — discordou do colega. Para ele, a morte não aterrorizava os escravizados:
— Os escravos não podem assaz prezar a vida, porque assaz não a gozam. Se para alguém a morte é menos repressiva, é para eles, que sem nenhuma boa esperança se insurgem e morrem brutalmente. Os suicídios mais frequentes são os deles, que creem na transmigração, creem que morrendo passarão desta para a sua terra. Faça-se para os escravos uma ordenança separada. E, por eles, não façamos tamanho mal aos cidadãos, aos homens livres.
Quando o Código Criminal foi assinado por D. Pedro I, fazia apenas oito anos que o Brasil havia se tornado um Estado independente. Era o período de sepultar as instituições coloniais e construir as nacionais. A Constituição havia nascido em 1824. O Senado e a Câmara, em 1826. O Supremo Tribunal de Justiça, em 1828. Faltava um código legal que balizasse a conduta dos súditos e, assim, garantisse a ordem e a segurança dentro da nova nação.
Desde que foram abertos, o Senado e a Câmara se preocuparam com a falta dessa lei. O deputado Silva Maia (MG) chegou a propor um prêmio ao jurista que levasse ao Parlamento a melhor sugestão. Não se chegou a organizar o tal concurso. O Código Criminal foi construído a partir das bases fixadas em 1827 por dois projetos de lei apresentados na Câmara, um do deputado José Clemente Pereira (RJ) e o outro do deputado Bernardo Pereira de Vasconcellos (MG).
Não é que o Brasil do Primeiro Reinado fosse uma terra sem lei ou estivesse mergulhada no caos social antes da criação do Código Criminal. Apesar da ruptura com Portugal, uma série de leis lusitanas baixadas na época da Colônia (1500-1815) e do Reino Unido (1815-1822) continuaram valendo. Uma delas eram as Ordenações Filipinas, de 1603, que tinham uma parte dedicada exclusivamente às questões criminais.
A lei do século 17, porém, já estava em larga medida claramente ultrapassada no século 19. Crimes e penas da época do absolutismo monárquico não faziam sentido na era do liberalismo político. Entre as punições, figuravam falar mal do rei e praticar feitiçaria. Entre as penas, a amputação de membros e a marcação da pele com ferro em brasa. A pena de morte era prevista a torto e a direito.
“Nós não temos Código Criminal, não merecendo esse nome o acervo de leis desconexas, ditadas em tempos remotos, sem o conhecimento dos verdadeiros princípios e influídas pela superstição e por grosseiros prejuízos [preconceitos], igualando-se às de Draco em barbaridade e excedendo-as na qualificação absurda dos crimes, irrogando [aplicando] penas a fatos a que a razão nega existência e a outros que estão fora dos limites do poder social”, avaliou uma comissão de senadores e deputados encarregada de dar forma ao Código Criminal.
Outro problema era que, estando boa parte das Ordenações Filipinas em desuso, muitos juízes se sentiam liberados para julgar os processos ao seu bel-prazer, aplicando a velha lei quando lhes convinha, por vezes atendendo a interesses escusos. Não havia o que hoje se chama segurança jurídica.
— Os cidadãos ainda são vítimas do arbítrio dos juízes. E quando terão as garantias, quando cessará essa arbitrariedade? Quando houver o Código Criminal que a Constituição tanto recomenda — afirmou o senador José Ignácio Borges (PE), pedindo urgência na votação.
s debates no Parlamento em torno da conveniência da pena de morte ultrapassaram a questão da escravidão. Os defensores dessa punição extrema argumentaram que, enquanto os brasileiros livres pobres permanecessem “atrasados”, somente o terror da forca seria capaz de refrear-lhes os instintos criminosos.
“A comissão desejou suprimir a pena de morte, cuja utilidade raríssimas vezes compensa o horror causado na sua aplicação, principalmente no meio de um povo de costumes doces, qual o brasileiro”, continuou o parecer da comissão de senadores e deputados. “Porém, o estado atual da nossa população, em que a educação primária não pode ser geral, deixa ver hipóteses em que seria indispensável.”
O deputado Luís Francisco Paula Cavalcanti (PE) concordou com a avaliação e aproveitou para fazer um alerta:
— A nossa pátria ainda não se acha em um grau de civilização tal que se possam admitir teorias escritas por homens filantrópicos e aplicadas a povos cuja civilização se acha no seu auge. Poderemos extinguir a pena de morte no Brasil com costumes ainda bárbaros? No interior, há assassinos de profissão. Em algumas províncias, temos crimes, e não tão poucos como se quer inculcar. Os inimigos desta Câmara dirão: “Os [deputados] exaltados proibiram a pena de morte. Pode-se matar e roubar a salvo!”. Isso há de produzir algum efeito contra nós.
Para os adversários da pena capital, por sua vez, matar criminosos ia contra a religião.
— Não tirarás a vida do teu próximo — discursou o deputado Lino Coutinho (BA), citando o quinto dos dez mandamentos bíblicos. — É um crime contra as leis de Deus, que na verdade não são senão as leis da natureza, o de mandar matar os seus semelhantes. Porém, os déspotas e os tiranos não conhecem Deus nem a natureza e por isso enviam tantos desgraçados ao patíbulo.
— Nós sabemos, segundo o Evangelho, que Jesus Cristo não queria a morte, mas só a conversão do pecador. Entendo que, se a nossa Constituição consagrou como religião do Estado a religião católica apostólica romana, a terrível pena capital ficou aniquilada, banida entre nós — avaliou o deputado Rebouças. — Além disso, a pena de morte produz péssimo exemplo. Por muito frequente na França nos nefandos tempos da anarquia e da desordem pública, induzia os meninos à imitação, guilhotinando gatos, frangões e outros semelhantes animais. Além de desnecessária e ineficaz, a pena de morte é nociva e depravadora. Não deve manchar o nosso Código Criminal.
O deputado Carneiro da Cunha (PB) chamou a atenção para o fato de que, no Brasil, ninguém desejava o posto de carrasco, pessoa incumbida de conduzir o condenado à forca, colocar a corda ao redor de seu pescoço e, se necessário, saltar sobre seus ombros para encurtar o sofrimento e apressar a morte.
— O carrasco é constrangido a ser cruel sacrificador e tingir as mãos no sangue da vítima, de quem não recebeu ofensa particular, muitas vezes para satisfazer às vinganças de um governo injusto e arbitrário. Isso, para mim, é o supra sumo da violência e o grau mais subido a que podem chegar o sofrimento do homem e o abatimento de sua dignidade.
Os açougueiros, que costumavam ser os mais procurados para esse papel, fugiam quando alguma execução se avizinhava. Os partícipes da Confederação do Equador, rebelião separatista e republicana deflagrada em 1824 em Pernambuco e províncias vizinhas, tiveram que ser fuzilados por falta de carrasco.
O deputado Bernardo Pereira de Vasconcellos, autor de um dos projetos originais, se impacientou com as tentativas de derrubar a pena de morte.
— Logo o Código Penal passará a ser Código Civil! — ironizou. — Parece-me que todos os senhores que falaram sobre esta matéria deveriam ilustrar à comissão sobre as penas que devem substituir a de morte. Devem também lembrar-se de que este código compreende os escravos. Examinem os ilustres deputados que nós não temos prisões [suficientes] para receber os que cometerem grandes crimes, uma vez que este código vai ser executado desde já.
Após intensos debates no Parlamento, o Código Criminal entrou em vigor prevendo, sim, a pena de morte. Ela, entretanto, ficava limitada a três casos: homicídio com certos agravantes (como utilizar veneno ou incêndio, fazer emboscada ou matar em troca de pagamento), latrocínio (roubo seguido de homicídio) e liderança de insurreição escrava. Nas três situações, a lei não fazia distinção entre escravizados negros e cidadãos livres. Qualquer pessoa poderia perder a vida pendurado na forca.
Ao longo de 313 artigos, o novo código buscava coibir crimes tão diversos quanto a tentativa de derrubar o imperador, a compra de voto (nas eleições para senador, deputado, juiz de paz etc.), o abuso de autoridade, a falsificação de moeda, o estelionato, a pirataria marítima, o vandalismo, o aborto, o estupro, o adultério, o casamento não autorizado pelos pais, a mendicância e até a vadiagem — no Império, o pobre que não trabalhava era enquadrado no artigo 295.
As punições eram dosadas conforme a existência de elementos agravantes e atenuantes no crime. As penas ficavam mais pesadas quando o condenado reincidia, não dava chance de defesa à vítima ou cometia o delito à noite ou em lugar deserto, por exemplo. E ficavam mais brandas quando ele agia em legítima defesa, após ser provocado pela vítima ou então bêbado.
A maioridade penal era de 14 anos. Mesmo assim, crianças e pré-adolescentes iam para o banco dos réus e até para a cadeia quando os tribunais entendiam que eles “obraram com discernimento”. Nesse caso, tinham que ser libertados assim que completassem 17 anos de idade.
O Código Criminal refletiu não apenas o momento social do Brasil de 1830, mas também o momento político. O conteúdo da lei representou uma derrota para D. Pedro I e uma vitória para seus muitos adversários no Parlamento. Ao contrário do que o imperador provavelmente desejava, a lei não previu a pena de morte para nenhum crime político.
Com as Ordenações Filipinas enfim revogadas em território brasileiro, D. Pedro I não poderia mais mandar executar nenhum inimigo político, tal qual havia feito em 1825 com o frei Caneca, o padre Mororó e outros rebeldes da Confederação do Equador.
Os próprios parlamentares conseguiram se blindar contra a pena de morte para o caso de, no futuro, se lançarem em alguma ação mais dura contra o imperador e acabarem sendo processados.
D. Pedro I estava tão combalido politicamente, em especial por causa de seus arroubos autoritários (como a dissolução da Assembleia Constituinte e a outorga da Constituição), que em abril de 1831, apenas quatro meses depois de assinar o Código Criminal, ele abdicaria da Coroa brasileira e abandonaria o país para nunca mais voltar. Fonte: Agência Brasil