Hoje eu gostaria de recomendar um projeto multimídia (e de fácil acesso).
No final de 2020, a Netflix, em parceria com o Laboratório Fantasma, lançou um documentário chamado “Emicida: AmarElo – É Tudo Pra Ontem”.
Eu sei, eu sei, muita gente não gosta de documentários, mas esse definitivamente é um que vale a pena ser conferido.
“Emicida: AmarElo – É Tudo Pra Ontem” acompanha principalmente os bastidores do álbum chamado Amarelo, do grande artista Emicida, que foi lançado em 2019, e o seu show de lançamento foi no Teatro Municipal de São Paulo.
O álbum por si só é algo que merece profundamente ser conferido, com músicas maravilhosas:
Nele você tem, por exemplo, a música “Ismália” -, e se você reconheceu o título do poema de Alphonsus de Guimaraens, não é mera coincidência. A música não apenas se inspira no poema como conta com uma leitura dele feita por, ninguém menos, que a grande dama do teatro, tv e cinema brasileiro: Fernanda Montenegro.
Ou “Quem Tem Um Amigo (Tem Tudo)”, que é um belíssimo tributo à uma das grandes referências da música nacional, o grande percursionista Wilson das Neves, que faleceu em 2017. “Quem Tem Um Amigo (Tem Tudo)”, além de ter o clipe mais divertido do álbum (os fãs de Dragon Ball vão adorar, pode procurar no Youtube), é acompanhado pela TokyoSka Paradise Orchestra, e conta com a participação da lenda musical (e uma das melhores pessoas para se seguir no Instagram): Zeca Pagodinho.
O disco é recheado de outras músicas excelentes, eu mesmo particularmente sou um grande fã de “Principia” e “Pequenas Alegrias da Vida Adulta”. Mas acho que a mais importante, dada a situação, é a música título do álbum: “AmarElo (Sample: Sujeito de Sorte – Belchior)”. Essa canção, além de contar com a incrível participação de Majur e Pabllo Vittar, ainda traz uma forte e assumida inspiração de “Sujeito de Sorte”, do Belchior.
Para mim que ouvi Amarelo (tanto o álbum quanto a música título) durante a pandemia, ele veio como um muito bem-vindo (e necessário) vaga-lume de esperança.
E é ai que entra o documentário.
“Emicida: AmarElo – É Tudo Pra Ontem” expande os temas tratados no álbum, além de explicar um pouco mais o contexto de cada música, a ordem delas no álbum, os bastidores de sua feitura e do show que o Emicida fez no Teatro Municipal de São Paulo. O mero fato de um artista negro, do rap e de origem periférica estar no principal palco de São Paulo, e um dos principais do Brasil, é por si só um momento histórico. E bem consciente desse feito (recuperar um espaço que foi negado a tanto como ele pelo preconceito estrutural desse país), Emicida costura seu documentário com vários fatos chaves da história da cultura negra brasileira nos últimos 100 anos. Isso é claro sem contar o belíssimo visual e, obviamente, a trilha sonora, que é o forte do filme como um todo.
E, como o próprio artista conta no documentário, pouco depois de ele lançar o álbum (e já no processo de feitura do filme) estourou a atual pandemia de Covid-19.
Com isso os tons de esperança dos quais Emicida canta em seu novo trabalho ganharam todo um novo significado, uma nova luz. Quando digo isso, tenho quase certeza que ele mesmo deve ter ficado desse sentimento, mas eu estava falando de mim na verdade. Tem alguns anos que eu ouço e aprecio Emicida, e tenho certeza que gostaria de Amarelo mesmo se não fosse a situação atual. Mas definitivamente a pandemia, a quarentena, a completa omissão do governo federal… Em suma, todo cenário basicamente apocalíptico, me fez ouvir todo o álbum com outros olhos (outros ouvidos no caso). E acho que posso afirmar, com alguma tranquilidade, que não devo ser o único que foi tocado pela releitura de Emicida, Maju e Pabllo Vittar das palavras de Belchior. O que uma vez Belchior cantou, como uma afirmação ao se declarar um “sujeito de sorte”, hoje eu ouço com uma esperança (mesmo que sem muita evidência para tanto), de que em algum momento vou poder repetir essas palavras como uma verdade:
Presentemente eu posso me
Considerar um sujeito de sorte
Porque apesar de muito moço
Me sinto são, e salvo, e forte
Tenho sangrado demais
Tenho chorado pra cachorro
(Eu preciso cuidar de mim)
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro
(Esse ano eu não morro)
Tenho sangrado demais (Demais)
Tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro
(Belchior tinha razão)
E espero ansiosamente pelo dia em que possa completar esse verso: “Ano passado eu morri, mas esse ano…”
(*) Arthur Arock é nascido em Governador Valadares e atualmente reside em Belo Horizonte. Sua formação acadêmica traduz numa ampla experiência no setor cultural. É escritor, crítico e comentarista cinematográfico e literário
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