[the_ad id="288653"]

Articulado antes da abolição, associativismo negro cresceu como reação ao racismo e forma de afirmação

FERNANDA CANOFRE

BELO HORIZONTE, MG (FOLHAPRESS) – Ainda no período do Brasil Colônia, locais que concentravam polos da compra e venda de pessoas escravizadas, como Rio de Janeiro, Salvador e Recife, ou regiões para onde foi levada a grande maioria dos escravizados, como Ouro Preto (MG), tiveram as primeiras formas que se tem registro de associações organizadas da população negra no país.
As irmandades católicas, como a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, a mais conhecida, tinham então um duplo sentido de evangelizar essa população, ao mesmo tempo em que serviam para criar uma identidade racial, ser o ponto de sociabilidade e resistência, já que muitas vezes os membros se organizavam para comprar alforrias.

O chamado associativismo negro no Brasil, organizações com o objetivo de satisfazer necessidades sociais, econômicas e culturais desse segmento, atuando dentro das regras permitidas por cada época, surge ali, mas se permeia por décadas, afirma o historiador e professor da Universidade Federal de Sergipe, Petrônio Domingues.

Desde as irmandades, passando por associações que se multiplicam no período pós-abolição, com a assinatura da Lei Áurea (1888), a constituição da Frente Negra Brasileira nos anos 1930, até os coletivos de hoje em dia presentes nas universidades públicas, Domingues relata que esse associativismo garantiu à população negra afirmar presença na esfera pública brasileira.

Ele pesquisa o tema desde os anos 1990, quando buscava responder a uma lacuna da historiografia, sobre o que havia acontecido a ex-escravos, seus filhos e netos, e encontrou os registros de associações e sociedades pelo Brasil.

Domingues é quem assina o verbete sobre o associativismo negro no “Dicionário da Escravidão e Liberdade”, publicado em 2018 pela Companhia das Letras. “O que há é falta de pesquisas, não há falta de fontes”, diz, refutando uma ideia que persistiu durante muito tempo.

Dezesseis anos antes da assinatura da abolição pela Princesa Isabel, um grupo de negros alforriados criou em Porto Alegre uma entidade que segue em atividade, a Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora.

Um dos papéis dela era ajudar a bancar os custos de funerais, para evitar que outras pessoas negras fossem enterradas em valas comuns.

O homem que se tornaria liderança na Revolta da Chibata (1910) no Rio de Janeiro, João Cândido, chegou a frequentar os eventos da sociedade –há um busto dele na sede– , também citada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) durante a campanha de 1994, como um dos clubes que foram instrumento de ascensão da população negra. FHC fez pesquisas sobre a escravidão no Rio Grande do Sul.

“Tinha sociedades germânica, espanhola, e criaram um espaço para nós, que não tínhamos espaço”, diz Ubirajara, atual presidente do local que funciona como clube social, com piscinas e eventos, na zona sul de Porto Alegre.

Há outras sociedades do tipo que seguem ativas, como o Clube Vinteoito de Setembro (1895), em Jundiaí (SP), e a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio (1888), em Curitiba.

Na época do Império, as associações beneficentes, algumas também organizadas para comprar alforrias, começam a surgir em vários estados –a Associação dos Republicanos de Cor, no Rio, ainda é pouco conhecida, segundo Domingues. Com a abolição e em seguida a Proclamação da República, em 1889, isso se expande ainda mais.

“Havia esse entendimento de que a Lei Áurea não resolveu todos os problemas sociais da população negra. Então, essas pessoas resolvem investir em ações específicas, reunindo indivíduos, famílias, a fim de compartilharem experiências coletivas e se unirem”, diz o historiador.

Na Primeira República, afirma ele, que também frustrou as expectativas da população negra, o associativismo funciona tanto como reação ao racismo existente, que não permitia a inserção dos negros em muitos espaços, quanto como afirmação, do negro buscando viver a partir de seus próprios termos.

Nos anos 1930, sob o governo de Getúlio Vargas, surge a Frente Negra Brasileira, primeiro partido político negro no Brasil, que chegou a ser recebida pelo presidente com uma pauta de reivindicações.

Na década de 1940, é criada no sul a União dos Homens de Cor, com sucursais em vários pontos do interior, e surge a companhia do Teatro Experimental do Negro, com Abdias do Nascimento. O golpe de 1964 traz uma retração, sobrevivendo assim as organizações com caráter mais cultural, como as carnavalescas.

“Esse associativismo negro sempre teve movimento de aceitação e refluxo, conforme o regime político em vigor. Nos períodos de democracia, onde o Estado é liberal, a tendência é expansão. Em governos ditatoriais, há retrocesso”, afirma Domingues.

A abertura política, ainda antes do fim da ditadura militar (1964-1985), começa a delinear o associativismo contemporâneo dos dias atuais, com o surgimento do Movimento Negro Unificado em 1978 e o aparecimento simultâneo de grupos espalhados pelo país.
Segundo Domingues, a importância desse associativismo, presente atualmente em grupos de mulheres negras reunidas em torno do tema de transição capilar, de coletivos de jovens negros nas universidades ou na organização de remanescentes de quilombolas e suas pautas, ainda ajudam a pautar políticas públicas e fortalecem a identidade dessa população.

“Na década de 1990, foi feita uma pesquisa que computou a presença de 1.300 associações negras espalhadas pelo Brasil. Esse número só se multiplica desde então. Nunca teve tanta capilaridade, força política e simbólica como hoje.”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

[the_ad_placement id="home-abaixo-da-linha-2"]

LEIA TAMBÉM