GIULIANA MIRANDA / LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Com casos e mortes por covid-19 no menor patamar em meses – nas últimas duas semanas foram três dias sem nenhum óbito -, Portugal está com a pandemia sob controle em todo o país. A principal exceção é a pequena Odemira, no Alentejo, onde o novo coronavírus prosperou em meio às péssimas condições de higiene a que trabalhadores imigrantes são submetidos.
A situação na cidade era tão ruim que, além de ter sido excluída do plano de desconfinamento, Odemira também recebeu uma cerca sanitária, proibindo a entrada e saída de seus bairros mais problemáticos.
No boletim epidemiológico da semana passada, a cidade registrava a incidência acumulada, nos últimos 14 dias, de 562 casos por 100 mil habitantes. A média nacional era de 66,9 casos por 100 mil habitantes.
Segundo dados compilados pela Universidade Johns Hopkins, Portugal soma 838 mil casos e quase 17 mil mortes desde o início da pandemia.
Autoridades portuguesas afirmaram que os números de Odemira já melhoraram, mas os dados mais atualizados ainda não foram publicados. Mesmo assim, a barreira sanitária permanece em vigor por pelo menos mais uma semana.
Dependente da agricultura intensiva, como boa parte do Alentejo (região mais pobre do país), Odemira abriga uma grande população imigrante para assegurar o manejo das colheitas. Cerca de 80% das infecções foram registradas em trabalhadores agrícolas estrangeiros.
A maior parte dos imigrantes são oriundos da Índia, Nepal, Bangladesh e de países africanos. A maioria não domina o português, e muitos também não falam inglês, o que os deixa ainda mais vulneráveis a redes de exploração de trabalho.
Amontoados em alojamentos superlotados e com pouca ventilação – muitos dormem em contêineres com beliches -, os estrangeiros têm sofrido com sucessivos surtos de covid-19. Com o resto do país com poucos casos, todas as atenções se voltaram para os focos na região.
As péssimas condições de higiene, somadas às muitas denúncias de exploração laboral – a polícia investiga pelo menos 11 casos de tráfico de pessoas – são conhecidas das autoridades, mas pouco foi feito até agora. Sem a mão de obra estrangeira, a agricultura em Portugal fica inviabilizada.
Escancarada pela Covid-19, a situação precária dos imigrantes passou a chamar a atenção, e reportagens na região se repetem diariamente nos jornais e emissoras de TV do país.
Pressionado, o governo acabou decretando uma medida polêmica: a requisição civil de um condomínio de casas ecológicas na região turística da Zambujeira do Mar, famosa pelas praias e por um festival de música.
As moradias do condomínio ZMAR deveriam abrigar temporariamente os migrantes que não têm condições de fazer isolamento social adequado em suas residências.
Descontentes, os proprietários – que incluem empresários e advogados famosos – passaram a pressionar por outras soluções.
Na madrugada desta quinta-feira (6), sob forte aparato policial, o primeiro grupo com cerca de 30 imigrantes foi transferido para o empreendimento turístico, que está em processo de insolvência e tem o Estado português como maior credor.
CRISE POLÍTICA
A situação em Odemira transformou-se em um dos principais assuntos políticos em Portugal. Na quarta-feira (5), o líder do principal partido da oposição (o PSD, de centro-direita), partiu para o ataque em rede nacional.
“Acho que Portugal tem todas as razões para se envergonhar de semelhante situação [de Odemira], não temos ali escravidão como era há 200 anos atrás, mas temos quase escravidão”, afirmou o deputado Rui Rio, em entrevista à RTP.
Nesta semana, vários políticos, incluindo o presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, foram até a região.
O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, afirmou que o governo está atento à situação dos imigrantes, mas ressalta que o prioridade é resolver a emergência sanitária.
Segundo ele, o direito à vida e à saúde é para todos os cidadãos de Odemira e para “os 10 mil cidadãos nascidos noutras terras, da Alemanha ao Nepal, todos iguais, todos com direitos que lá vivam”.
Nesta quinta-feira (6), a situação foi longamente discutida em sessão no Parlamento. A atuação do governo do primeiro-ministro, António Costa (Partido Socialista), sofreu ataques de quase todos os partidos.
Deputados lembraram que o Executivo autorizou, em outubro de 2019, que trabalhadores agrícolas possam ser instalados em contêineres. A medida tem validade de dez anos não prorrogáveis, mas há pressão para que ela seja revertida.
“O que aconteceu em Odemira é a ponta do iceberg que se repete por todo o país agrícola”, disse a deputada Beatriz Gomes Dias (Bloco de Esquerda).
“Muito antes da pandemia já havia relatos de casas sobrelotadas; nós já sabíamos que as pessoas pagavam várias centenas de euros por casas insalubres e degradadas, onde viviam amontoadas”, completou.
Diversas associações de direitos humanos e de apoio aos imigrantes têm denunciado as péssimas condições dos trabalhadores, ressaltando ainda que muitos são vítimas de discriminação pelo resto da população local.
“A falta de condições de habitabilidade em que muitos desses imigrantes se encontram, com risco grave para a sua saúde e para a saúde pública, exige uma rápida resposta. E a resposta não pode ser a estigmatização”, diz a ONG SOS Racismo.
Apesar dos baixos salários, Portugal é um dos países europeus em que o processo de regularização é mais simples para estrangeiros, incluindo os que entram sem o visto de trabalho adequado. Nos últimos cinco anos, o país viu um aumento expressivo da população estrangeira residente.
Em 2020, o país atingiu o recorde de mais de 707 mil imigrantes legalmente vivendo no país: um aumento de 19,9% em relação a 2019, que já havia sido de crescimento.