Violência Intrafamiliar e ‘uma sociedade doente’

FOTO: Freepik

Delegada da Polícia Civil, comandante da PM e psicólogo analisam alto índice de assassinatos, na região, entre pessoas da mesma família

Na madrugada do dia 1º de junho, Laíde Fonseca Amaral, de 79 anos, foi assassinada com pelo menos 30 facadas pelo próprio filho, um homem de 51 anos. O caso aconteceu no bairro de Lourdes, em Governador Valadares. De acordo com a Polícia Militar (PM), o filho da idosa foi quem confessou o crime e relatou que, na noite anterior, avisou a mãe sobre o risco que ela corria. Laíde, então, teria convidado o filho para fazer uma oração antes de dormir. Horas depois, a idosa foi morta pelo filho. Ele foi preso.

Um mês antes, no dia 2 de maio, a polícia se deparou com outro cenário, mas inverso, envolvendo mãe e filho, no bairro Jardim Atalaia. Dessa vez, a própria mãe, de 67 anos, foi quem tirou a vida do filho dela, de 48, também com uma faca. Wantuil Rocha Souza morreu ao ser golpeado no tórax, após um desentendimento entre os dois, presenciado pelo irmão da vítima. A idosa foi encaminhada para a delegacia, prestou depoimento e foi liberada. Na ocasião, o  delegado considerou a possibilidade de legítima defesa da mulher, após averiguar registros de ocorrências de agressões envolvendo a mãe e o filho. O caso segue sendo investigado.

Apenas 11 dias depois, no dia 13 de maio, mais uma família de Valadares se envolveu numa discussão fatal. Segundo a PM, dois irmãos estavam bebendo juntos, no bairro Santa Rita, e começaram a se desentender por motivos banais. Os dois teriam entrado em luta corporal, com capacetadas, socos e chutes. Edmilson Gomes Nunes, de 46 anos, foi socorrido às pressas pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), mas não resistiu. Ele morreu no Hospital Municipal, após sofrer traumatismo craniano. O irmão dele foi preso.

Esses são apenas três exemplos, recentes, ocorridos em Governador Valadares. De outubro de 2020 a junho de 2023 – dois anos e oito meses – o DIÁRIO DO RIO DOCE registrou, dentre dezenas de crimes brutais, pelo menos 19 casos de violência intrafamiliar contendo ameaça, tentativa ou a consumação de assassinato entre familiares de primeiro e segundo grau (pai, mãe, filho, irmãos, avós) ou pessoas com algum grau de vínculo familiar, como sogros, primos, padrastos, etc. Desses 19 casos, 7 aconteceram somente neste ano de 2023 (sendo 6 deles no Vale do Rio Doce) e todos resultaram em morte. Esse número já corresponde a mais de um assassinato por mês na região, só entre parentes. Nesta pesquisa, estão inclusos registros das regiões dos vales do Rio Doce, do Jequitinhonha e do Aço. Além disso, não estão inclusos, neste material, os incontáveis casos de crimes passionais e feminicídios.

Mediante a intensidade com que esses crimes vêm acontecendo em Valadares e região, o DIÁRIO DO RIO DOCE procurou autoridades da Segurança Pública, além de um profissional da psicologia, para tratar das possíveis causas e soluções relacionadas à violência intrafamiliar. Para isso, foram entrevistados a delegada de Polícia Civil Adeliana Xavier Santos, o coronel Paulo Henrique, comandante da 8ª Regional da Polícia Militar (8ªRPM), e o psicólogo clínico Fernando Barbosa.

‘A pandemia potencializou bastante esse tipo de violência’, afirma Coronel

O comandante da 8ª RPM, Coronel Paulo Henrique, considera inevitável associar esses números à violência doméstica contra a mulher; uma vez que a prática se tornou ponto de partida e parâmetro para outros crimes. Desse modo, segundo o coronel, se há muitos crimes de violência contra a mulher, há, também, outros tipos de violência dentro do ambiente familiar. “Sabemos que todas as formas de violência contra a mulher apresentaram um crescimento acentuado no último ano, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É notório que esses casos específicos também iriam aumentar”, pontua o coronel.

Ainda segundo o comandante da 8ª RPM, o desequilíbrio dentro das famílias se agravou após a pandemia. “Não se pode destacar apenas uma causa específica, mas a pandemia de covid-19 potencializou bastante esse tipo de violência”, afirma. Para enfrentar essa realidade, segundo o militar, a polícia faz o acompanhamento dos casos quando há registro de ocorrência. “Em casos como esses, ou os considerados mais graves, é feito o monitoramento do autor e da vítima como forma de demonstrar o conhecimento da PM sobre aquele fato e, automaticamente, desestimular o autor a cometer crimes mais graves, bem como apoiar a vítima”, explica.

Por isso, o coronel reforça a importância da denúncia a qualquer indício de violência. “Por ser crimes que acontecem dentro do ambiente doméstico, requer um esforço maior e colaboração de todos do lar. No quesito prevenção, é aconselhável o familiar não provocar o outro, não tentar agir por conta própria e sempre procurar a Polícia Militar em casos de ameaças e agressões para evitar que esse fato evolua para um crime mais grave”, orienta.

‘O número de policiais atuando é baixo para suprir toda a demanda de violência na cidade de Valadares, diz delegada

A delegada de Polícia Civil Adeliana Xavier revela que a violência intrafamiliar costuma ser resultado do adoecimento das pessoas do seio familiar, o que acende o alerta da Polícia Civil e dos demais órgãos de Segurança Pública. “Todo homicídio desperta a preocupação dos atores integrantes da Segurança Pública, pois é uma vida que é tirada. Quando nos deparamos com homicídios ocorrendo no seio familiar, nos deparamos com o adoecimento das pessoas do seio familiar. Observamos que há falta de segurança dentro da própria casa. E, como delegada de polícia, me questiono a respeito do que poderia ter sido feito, mas é difícil encontrarmos resposta”, reflete.

Quanto às medidas protetivas, a delegada afirma que não são suficientes para cessar os crimes. Adeliana Xavier explica que, inclusive, há poucos policiais para resolver tamanha demanda, o que aumenta a preocupação da força policial. “Mulheres que têm medidas protetivas, por exemplo, não dispõe de um sistema de proteção integral para elas; restando ela com um papel nas mãos. As polícias carecem de servidores. O número de policiais atuando é baixo para suprir toda a demanda de violência na cidade de Valadares”, enfatiza.

Assim como o coronel da PM, a delegada de Polícia Civil também reforça a relação dos assassinatos dentro do seio familiar com o histórico de violência doméstica contra a mulher. Além disso, Adeliana lamenta a forma com que esse “adoecimento” ainda não explicado deixa o próprio familiar sem saber a forma certa de agir. “No caso da mãe que matou o filho, a idosa teve que escolher entre a vida dela e do filho, pois a violência no âmbito doméstico já era uma constante para a idosa e seu marido, também idoso. O filho que matou a mãe, informou a ela que iria matá-la, mas ela preferiu orar para que ele melhorasse. Estamos numa sociedade doente”, conclui.

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