ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Priscilla adorava requebrar ao som daquele batidão, mas quem disse que o pastor deixava?
“Brinquei muito com o Leandrinho: você não está entendendo o valor sentimental disso, porque eu era criança de igreja e não podia ouvir Bonde do Tigrão”, ela reproduz à reportagem o papo que teve com Leandro Moraes, vocalista da veterana banda de funk. “Mas quem não ouvia? No ‘off’, todo mundo dançava.”
A paulista agora não só escuta o ritmo, como fez uma parceria que deu o que falar -uma ex-gospel com o Bonde do Tigrão. “Quer Dançar”, primeiro single de “Priscilla”, seu novo álbum, conta com os próprios para atualizar a letra mais famosa dos funkeiros cariocas. Você sabe qual é: “Quer dançar, quer dançar/ o tigrão vai te ensinar”.
Muitos evangélicos, categoria na qual a artista de 27 anos se via até pouco tempo atrás, também sabiam, ainda que nos cultos alguns disfarçassem, porque não pegava bem se deixar levar por um gênero tão associado à devassidão. O hit veio com tudo no começo dos anos 2000 e rendeu até versão gospel: “Quer orar, quer orar, o irmão vai te ensinar”.
Priscilla insere os versos originais numa letra sobre uma mulher que é como “uma noite de céu estrelado, nem Van Gogh, nem Picasso, foi mamãe quem pintou esse quadro”.
No clipe, aparece com roupas coladas e decotadas em várias partes do corpo, mais piercings (falsos) na lateral superior do nariz e um cabelo vermelho e curto bem diferentes das longas madeixas castanhas que cultivava desde a fase religiosa da carreira.
Talvez você tenha percebido que, até agora, ela foi apresentada sem sobrenome. Pois é. Até ontem, era conhecida como Priscilla Alcantara, uma grife da música evangélica, experiente nos palcos da Marcha para Jesus.
Abreviou a alcunha artística este ano justamente para reforçar seu divórcio com a indústria gospel, pela qual circulou por anos até decidir investir numa imagem mais pop e, como diriam os irmãos de fé, secular –como se fala nos templos das coisas que não pertencem à ordem da fé cristã.
Ela acha que o sobrenome “tinha uma grande bagagem”, como uma marca da qual tem “muito orgulho, muito respeito, mas que deixei de canto, guardadinha”. Agora, diz, é hora de se livrar desse excesso de peso. “Às vezes você tem uma bagagem cheia de ferramentas muito úteis para o caminho que estava percorrendo, mas essas ferramentas não vão ajudar em nada no que você quer construir agora.”
E o que quer Priscilla nesta nova etapa de vida? Tem a resposta imediata: ser “esta artista pop, versátil, que explora novas temáticas”. E tem também um efeito colateral que se vier é lucro: que sua “coragem de resetar toda uma carreira”, afirma, “inspire outros artistas a não serem reféns das próprias jornadas”.
A direita bolsonarista é inclemente com a metamorfose artística de Priscilla, que no ano passado cravou com força sua posição contra Jair Bolsonaro, do PL, então presidente em busca da reeleição. Gil Diniz, do PL-SP, deputado estadual que também atende por Carteiro Reaça, foi um dos que a fustigaram.
O amigo da família Bolsonaro postou uma foto da jovem antes e depois do visual de cabelos em vermelho vivo e propôs uma comparação. “Priscilla Alcantara com Deus no coração e Priscilla Alcantara agora. Dá pra acreditar que é a mesma pessoa? Que triste isso.”
Não, Priscilla não é a mesma. E diz estar feliz com isso. Ainda acredita em Deus e tem pastores que gosta bastante, como Ed René Kivitz, da Igreja Batista Água Branca. Mas, quando questionada se ainda se considera evangélica, a ex-fiel de uma igreja adventista de Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, confessa: não está tão certa disso.
E filosofa: “Como é que a coisa mais pura da existência do ser humano, que deveria ser a fé, foi tão instrumentalizada e monopolizada a ponto de eu não conseguir dizer para você que sou [evangélica], porque senão vou ser colocada no mesmo saco de gente que não tem nada a ver com o que eu compactuo?”.
Prefere formular assim: “Eu falo que tenho a minha fé em Jesus. Se é o mesmo Jesus que o dessas pessoas, já não sei se te dizer”.
Numa primeira conversa com a reportagem, no ano passado, Priscilla rejeitou rótulos prontos –se é crente ou não, isso ou aquilo, assim ou assado. “Jesus é meu pilar, minha família é meu pilar. No final do dia, não paro e penso: fui cristã progressista hoje? Só quero saber se fui coerente com a minha fé.”
Essa etiqueta progressista a seguia mesmo antes de abandonar o meio gospel. A proximidade com a comunidade LGBTQIA+, que há tempos a abraça, gerou ruídos no segmento. Em 2017, O Fuxico Gospel, site que traz fofocas quentinhas das igrejas, questionou se “a cantora gospel Priscilla Alcântara é lésbica”, acrescentando que “as alegações são antigas, e Priscilla nunca negou nenhuma delas”.
A artista, que se define como uma mulher heterossexual aliada da causa, diz achar “muito engraçado” a curiosidade pela sexualidade alheia, algo que entende ser privado.
O que faz questão de tornar pública é sua posição, como quando tachou de “podre” uma fala da cantora gospel Bruna Karla. Ela havia se gabado de recusar o convite para o casamento de um amigo gay por crer que esse grupo está “no caminho da morte eterna”.
Priscilla diz não estar muito esperançosa sobre o que vê como fundamentalismo religioso. “Para pessoas que pensam com essa dicotomia sobre tudo, vai ser assim para sempre”, diz. Mesmo quando era do gospel, encrencava com essa visão de mundo. “Abri muitos debates sobre por que a gente tem que viver debaixo de dicotomia se nem a própria Bíblia, que instrumentalizam tanto, respalda essa atitude.”
No ano passado, quando engatou sua guinada secular, ela tatuou uma palavra na parte interna dos lábios: “Amar”. Pediu pomada anestésica para o procedimento. Conjugar esse verbo às vezes dói, mas Priscilla, que na época lançava com Emicida o single “Você Aprendeu a Amar?”, continua achando que vale a pena.