por CAROLINA VILA-NOVA
FOLHAPRESS
O subprocurador geral Lucas Rocha Furtado pediu nesta segunda (21) que o Tribunal de Contas a União investigue se a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, violou o princípio constitucional da laicidade do Estado ao valer-se das prerrogativas de seu cargo para tentar impedir a realização de aborto legal pela menina capixaba que engravidou após ser estuprada.
Argumenta ainda que, ao fazê-lo, a ministra deixou de cumprir a responsabilidade de proteger a criança.
A representação tem por base a reportagem publicada nesta segunda pela Folha de S.Paulo sobre a operação o envio à cidade de São Mateus (ES), pela ministra, de representantes do ministério e aliados políticos que tentaram impedir a interrupção da gravidez.
O objetivo da operação, que envolveu pressão e oferta de benfeitorias ao conselho tutelar local, era transferir a criança para um hospital em Jacareí (SP), onde ela aguardaria a evolução da gestação e teria o bebê, apesar do risco de vida.
A peça assinada pelo procurador do Ministério Público junto ao TCU, a qual a Folha teve acesso, questiona também se “a Administração Pública Federal, mesmo ante a laicidade constitucional do Estado brasileiro, vem deixando contaminar os atos oficiais do governo por convicções religiosas pessoais de seus integrantes”.
“O objetivo é que haja uma discussão. Não pode algo de tamanha importância ficar calado”, afirmou Furtado à Folha. “A questão principal é separação da religião do Estado. Afinal, a Constituição defende a laicidade. Defende que o Estado deve ser separado da religião para que todas sejam praticadas, ou eventualmente nenhuma, ou seja, liberdade total.”
Furtado questiona também a função do Estado: “Haveria ou não omissão do Estado, que deveria proteger uma menina, no caso? Não me parece correto o Ministério dos Direitos Humanos não defender a vítima, que é uma criança”.
O TCU, que tem competência constitucional de controle externo de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da Administração Pública Federal, pode acatar ou indeferir o pedido. Caso seja aceito, um relator será designado.
“Para o Estado, tratando-se de procedimento permitido legalmente, o aborto realizado pela menina (…) não constituía ato a requerer qualquer intervenção, senão os necessários para a proteção da vítima”, afirma o texto.
“Em vez disso, o aparato estatal foi posto em ação meramente para dissipar angústias pessoais da ministra Damares Alves, que tem, relativamente à questão do aborto, uma postura contrária ao ordenamento jurídico brasileiro, o qual permite clara e expressamente hipóteses de exceção à regra geral de criminalização do procedimento.”
Damares contestou a reportagem e afirmou que enviou a equipe para “fortalecer a rede de proteção à menina”.
A menina cumpria as duas condições previstas no Código Penal brasileiro para a realização de um aborto legal: gravidez resultante de estupro e risco de vida para a mãe. A terceira, introduzida pelo Supremo Tribunal Federal, é anencefalia do feto.
O subprocurador aponta também a suspeita de que “a atuação da ministra, mesmo se buscasse apenas dissuadir a família da menina da realização do aborto permitido pela lei, acabou por provocar sua exposição”.
Relatos ouvidos pela reportagem indicam que partiu da equipe de Damares o vazamento da identidade da criança logo antes de ela ser levada ao Recife para a realização do procedimento -o hospital em Vitória se recura a fazer o aborto, amparando-se em normativa federal que recomenda avaliar o atendimento em casos de mais de 20 semanas de gestação ou peso fetal superior a 500 gramas.
A exposição fez com que a criança e sua responsável fossem inscritas no Programa de Proteção a Testemunhas, tendo seu nome e endereço alterados.
“O órgão público [o ministério] foi conduzido não de acordo com o que lhe impõe a Constituição e a lei, mas, sim, de acordo com as convicções morais e religiosas de sua dirigente, não só dificultando ato protegido pelo ordenamento jurídico, bem como favorecendo ocorrências que esse mesmo ordenamento jurídico procura evitar”, diz a representação.
O caso veio à tona em 7 de agosto, e a ministra manteve silêncio público quanto ao aborto, afirmando apenas que mandaria representantes à cidade capixaba para acompanhar o caso. Porém, em entrevista na semana passada ao jornalista Pedro Bial, Damares afirmou discordar da realização do procedimento e considerar que o correto seria aguardar duas semanas e antecipar o parto.
“Os médicos do Espírito Santo não queriam fazer o aborto, eles estavam dispostos a fazer uma antecipação de parto. Não era a criança ir até o nono mês”, afirmou. “Mais duas semanas, poderia ter sido feita uma cirurgia cesárea nessa menina, tirar a criança, colocar numa incubadora. Se sobreviver, sobreviveu. Se não, teve uma morte digna.”
No programa de Bial, Damares declarou também que “põe a mão no fogo” de que não foram seus assessores enviados a São Mateus que vazaram a identidade e a localização da menina.
Ainda nesta segunda, o ex-ministro da Saúde e senador Humberto Costa (PT-PE), afirmou que ingressará com uma representação na Procuradoria-Geral da República (PGR) para que a ministra responda por crime de responsabilidade pelo caso de São Mateus.