Uma das maiores artistas de Minas Gerais, Dona Izabel do Jequitinhonha teve seu centenário celebrado em exposição no Rio de Janeiro
RIO DE JANEIRO – Mais que uma história de superação! Trata-se de uma transformação de vidas, um legado e um patrimônio cultural de Minas Gerais. Um presente do Jequitinhonha para a humanidade. Dona Izabel Mendes da Cunha, a Dona Izabel do Jequitinhonha, teve seu centenário comemorado na última terça-feira (20) de forma magnífica.
A grande artesã e mestra do barro, que faleceu em 2014, com 90 anos, agora tem status internacional com suas obras expostas no Centro Sebrae de Referência do Artesanato Brasileiro (CRAB), no Centro do Rio de Janeiro (RJ), onde milhares de turistas de toda parte do mundo passam diariamente. Assim, a história dessa incrível mulher fica, definitivamente, eternizada. Tanto para Minas, quanto para o mundo.
De família carente, Dona Izabel aprendeu a produzir peças do barro com a mãe ainda criança. A princípio eram utensílios domésticos, visto que naquela época ainda não havia vasilhas de alumínio, muito menos de plástico, como temos hoje. Com o passar do tempo, Dona Izabel começou a produzir moringas para armazenar água. Para dar um toque especial aos produtos, decidiu fazê-las com cabeças de mulheres. Foi daí que nasceu suas principais obras de arte: as bonecas do Jequitinhonha. De olhos marcantes, cor do barro, refletindo o tom de pele do lindo povo mineiro do Jequitinhonha, Dona Izabel retratou em suas bonecas a luta diária de centenas de mulheres guerreiras. Através da arte, a vida transcendeu os limites territoriais do Vale! Mas não foi fácil.
Segundo o curador da exposição em homenagem a Dona Izabel, o antropólogo Ricardo Gomes Lima, o legado de Dona Izabel foi construído com muita luta e paixão. “Dona Izabel é uma das grandes artistas que esse País já teve. Uma mulher de uma dignidade impressionante e uma generosidade enorme. As obras dela são importantes não apenas para o Vale do Jequitinhonha, mas para Minas, berço da cultura desse País, para o Brasil e para o mundo. Dona Izabel foi uma artista que recebeu prêmios internacionais, como o prêmio da UNESCO. E isso para nós é um orgulho. Foi uma mulher do povo, uma sertaneja, nascida na zona rural, mulher de um vaqueiro, que ficou viúva cedo, com quatro filhos para criar, e que constrói uma obra impressionante, de uma lucidez extrema nas relações com as pessoas. Ela tinha consciência plena do que ela estava deixando para a humanidade, quando ela pediu que os filhos cuidassem de suas obras e zelassem por elas. Ela sabia que por trás daquilo, vidas estariam sendo melhores do que a vida árdua que foi a dela. Ela deixa uma outra realidade para famílias que ainda vivem do barro”, explica, emocionado, Ricardo Lima, ressaltando que Dona Izabel não possuía energia elétrica em sua residência e caminhava todos os dias 11 km de Santana do Araçuaí, até a BR-116, em Ponto dos Volantes, para expor suas obras àqueles que passavam pela rodovia. “O que ela não vendia, ela levava de volta todos os dias. Até que um prefeito de Padre Paraíso [Solano Barros, já falecido], condoído com a dificuldade dela, ofereceu a ela um ponto, um local, naquela cidade, na década de 1970, para ela guardar os produtos e não precisar voltar com eles para casa”, completa.
A generosidade de Dona Izabel é outro ponto marcante em sua história. Além de ensinar os filhos a produzirem as peças, ela também repassou a arte a outras famílias do Jequitinhonha. Ela tinha total certeza que através da arte, aquelas famílias poderiam mudar a realidade social em que viviam, transformando o barro em ouro. Ela não só ensinou, como incentivou e até pedia que as pessoas que fossem comprar seus produtos, levassem também dos outros que estavam aprendendo. Assim ela dividia não só os recursos financeiros, como mantinha em outros artesãos algo fundamental para a vida: esperança.
Atriz Marieta Severo se emociona ao conhecer a família de Dona Izabel
A atriz e roteirista Marieta Severo é uma das grandes admiradoras do trabalho de Dona Izabel. Ela possui mais de 30 bonecas em sua coleção, expostas em sua residência.
“É deslumbrante. Ela já foi muito consagrada em vida, mas não há consagração suficiente pelo que ela fez. Eu sou cercada da obra dela e da família dela. Ela me tocou, me sensibilizou, me deu muita emoção. Estão todas na minha casa. Eu nunca comprei nenhuma peça para ficar guardada. Eu preciso conviver com elas. Eu me alimento delas. E eu nunca consegui ir ao Vale do Jequitinhonha. Eu sempre trabalhei muito. Sempre que eu planejava não dava certo. Mas eu tenho essa promessa comigo mesmo de ir lá. Vou ficar muito emocionada. O pessoal mais jovem não sabe o caminho enorme que foi percorrido por esses artistas brasileiros. Então é um momento de muita emoção. Ficou tudo tão bem organizado que estou quase lá no Vale”, afirmou. Minutos depois a atriz se emocionou ao conhecer pessoalmente os familiares da artesã.
A mostra ficará exposta no Rio de Janeiro por 8 meses no Centro Sebrae de Referência do Artesanato Brasileiro (CRAB), que fica na Praça. Tiradentes, 69 – Centro. Em seguida, irá para Brasília. Grande parte do trabalho pode ser comprado no CRAB. Toda a renda dos produtos retorna 100% para a Associação dos Artesãos de Santana do Araçuaí (@artesanatosantanadoaracuai). Quem, porém, desejar conhecer a associação de perto, pode visitar Santana do Araçuaí para conhecer o trabalho impecável dos artesãos. O contato da Associação é (33) 99939.8395.
Legado continua sendo repassado a outras gerações
Como previsto, a família de Dona Izabel, que dá continuidade ao legado da matriarca com outras dezenas de artesãos do Jequitinhonha, compareceu à cerimônia em homenagem à artista. Glória Maria Andrade, filha de Dona Izabel, se emocionou ao ver mais de 300 obras expostas na mostra.
“A gente fica triste com a ausência dela, mas honrados com a história que ela deixou. O coração está transbordando de alegria, de emoção. Quando vejo tudo isso acontecendo, eu sinto ela aqui do meu lado, esperando que isso aconteça. Se ela estivesse aqui ela se sentiria muito feliz”, comenta Glória Maria.
A artesã lembra com carinho do esforço da mãe para que outras pessoas de Santana do Araçuaí fossem vistos por meio da arte. “Antes de ter uma associação em Santana do Araçuaí, a gente não tinha uma loja. Não tinha um local para expor o que todo mundo estava fazendo e o que ela estava ensinando. Quando chegava um comprador, ela o levava na casa dos outros artesãos para ajudar. Com o passar do tempo, ela viu a necessidade de ter um local para expor o trabalho de todo mundo. Então ela pediu uma ajuda em 1970 e a Codevale [Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha] ajudou a fundar uma associação em Santana do Araçuaí. Foi quando o trabalho se desenvolveu”, explica.


Neta de Dona Izabel, Andreia Andrade também é artesã há 30 anos. Ela começou cedo no ofício, diretamente com a avó. “Eu tive uma escola dentro de casa, um berço de barro. Junto com minha família, fui muito incentivada a fazer as bonecas de barro, sempre com muito incentivo da minha avó e dos meus pais, que também são artesãos. Minha avó sempre me orientou e isso enriquecia nossas obras. Hoje meus filhos também dão continuidade ao trabalho, incluindo o mais novo, o Mateus, que tem apenas 9 anos e já tem trabalho exposto aqui na mostra. Estou vendo meu filho, a quarta geração da nossa família, dando continuidade ao legado da minha avó. Ela me falou um dia que o trabalho dela não iria acabar e isso está acontecendo realmente. Ela pediu que a gente não deixasse que a nossa arte popular não acabasse e vamos dar continuidade a esse legado”, conclui.
Dona Izabel receberá Medalha JK em setembro
Presente na homenagem, o vice-governador de Minas, professor Mateus Simões, exaltou o legado deixado por Dona Izabel para o Estado e anunciou que ela receberá a mais alta condecoração da Medalha Juscelino Kubitschek, em setembro, durante solenidade que acontecerá em Diamantina.
“Fizemos questão de formalizar a indicação de Dona Izabel por seu centenário, uma homenagem póstuma, para que ela receba a medalha. Desta forma, a gente continua valorizando aqueles que continuam escrevendo a história de Minas Gerais de forma brilhante. Valorizar nosso povo mineiro é sempre importante e vale a pena”, destacou Simões.
O superintendente do Sebrae Minas, Afonso Maria Rocha, destacou a importância da exposição e o propósito do Sebrae Minas de apoiar o empreendedorismo e os pequenos negócios da atividade, com o objetivo de gerar renda para as pessoas. “O artesanato do Vale do Jequitinhonha, com o passar dos anos, vem se desenvolvendo muito sem perder a originalidade. Conseguimos trabalhar a qualidade do produto sem perder suas características originais. Trazer essa homenagem à Dona Izabel aqui no CRAB é uma maneira de destacarmos toda essa importância dela como exemplo e ícone para todos os artesãos locais. O Sebrae Minas trabalha a atividade preservando a riqueza do Jequitinhonha, mas que isso também serve como elemento forte para a geração de riqueza”, afirma.
Além da medalha JK, Dona Izabel já recebeu outras premiações por seu trabalho, como o Prêmio Unesco de Artesanato Popular para a América Latina e Caribe, a Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura do Brasil e o Prêmio Culturas Populares do MinC. Em 2016, sua obra foi celebrada com uma série especial de selos postais emitida pelos Correios.













