Gabriel Martins sobe no palco um pouco a contragosto. Pelos seus planos, deveria estar no Mineirão assistindo ao jogo que poderia levar (e levou) o Cruzeiro de volta à primeira divisão. Ele está vestindo ainda a camisa do seu time do coração, mas o dever se impõe –afinal, “Marte Um” foi escolhido para representar o Brasil na pré-seleção para o Oscar de filme internacional.
Ao final da sessão, o filme é aplaudido de pé. É a primeira vez que um filme mineiro é escolhido para ir, se tudo der certo, ao Oscar. Mais, é um filme de um diretor negro, com personagens negros.
Não se pense, porém, em um filme militante. Ele honra, na verdade, a tradição da Filmes de Plástico, produtora de três jovens cineastas de Contagem, cidade do entorno de Belo Horizonte, que pôs Minas Gerais no mapa do cinema brasileiro (e um pouco mais que isso) no século 21.
Minas está entusiasmada. A previsão da distribuidora, Embaúba, era chegar a 10 mil espectadores. Nas primeiras três semanas, chegou a 25 mil. Não é muito, se comparado a um filme de super-herói da Marvel, ou mesmo a um sucesso como “Medida Provisória”, de Lázaro Ramos.
Mas “Marte Um” faz parte de um circuito bem mais restrito, no qual filmes brasileiros têm penado no pós-pandemia para chegar a 5.000 espectadores. O filme estreou em 30 salas. Na terceira semana está chegando a quase 80. “Ainda muito pouco se comparado ao tamanho do circuito brasileiro”, comenta o crítico Marcelo Miranda, um dos curadores do 16º CineBH, onde o filme está sendo apresentado.
Gabriel Martins já fez vários curtas, participou de filmes de episódios, codirigiu um longa com Maurílio Martins, outro sócio da Filmes de Plástico, trabalha regularmente como montador. Mas sua estreia tem elementos que o levam a um sucesso popular único. Quais serão? Talvez a ideia do jovem adolescente Deivinho, que sonha em se tornar astrofísico e participar da primeira expedição colonizadora em Marte.
Deivinho representa boa parte dos brasileiros, com a diferença que eles costumam sonhar em mudar de país. O jovem sonha em ir para outro planeta. Radicalidade que coincide com o desprezo que tem por seu próprio talento como futebolista, em favor do conhecimento.
No palco, Martins sorri ao saber que o Cruzeiro venceu o jogo. Pode voltar a pensar em seus espectadores.
Sua mágoa –as pessoas de Contagem, em geral pobres (é conhecida como “cidade dormitório”), não têm aparecido para ver “Marte Um” no shopping da cidade. O ingresso é muito caro para quase todos, ele conta.
Que fazer? Eis um problema que atinge todo o cinema de modo geral mas, com maior intensidade, o filme de arte. A indicação ao Oscar é que permitiu romper essa bolha e chamar a atenção de um público em geral indiferente a esse tipo de filme.
Mas nem só do desejo de Marte se nutre o filme. Gabriel Martins se prende à saga de uma família, os eventos que a desagregam e os que aproximam as pessoas do núcleo familiar. Dramas que podem ser correntes (uma perda de emprego, uma orientação sexual menos ortodoxa, um trauma sofrido na rua etc.).
Nada tão relevante, para Martins, quanto a cena em que o pai da família, vivido por Carlos Francisco, quebra o gelo antes de um churrasco que prepara para comemorar o aniversário da mulher. O filme é povoado por esses detalhes, tão banais quanto difíceis de se encaixar em um filme, que mostram aspectos da vida em Contagem ao mesmo tempo em que definem os personagens do filme.
Detalhes que, ressalta Martins, vêm do hábito de caminhar, de andar pela cidade a pé, nunca de carro. Maneira segura de reter imagens que, mais tarde, retornam como detalhes marcantes em suas ficções. Um bom método para cineastas. Um método que, junto com sua capacidade de tratar os pequenos dramas do cotidiano pode levar (ou não) à disputa pelo Oscar.
A concorrência é difícil (são 92 os países inscritos, diz ele). Daqui por diante será preciso fazer, com recursos mais que limitados, campanha para que os eleitores vejam o filme e, talvez, se afeiçoem a ele.
Quanto a isso, não há escolha. O essencial é que “Marte Um” afirma Martins como novo cineasta de ponta no cinema brasileiro e, claro, parte da escola mineira, uma das mais originais e fortes do cinema brasileiro contemporâneo.
O bate-papo final termina mais por ordem do mediador do que por fadiga do público, que permanece na sala lotada. Martins ainda tem tempo para alguns cumprimentos e muitas fotos. Ele se despede depois apressado. Agora trata de ir ao principal –comemorar a vitória do Cruzeiro e a volta à primeira divisão. Por algum tempo esse retorno pareceu tão improvável quanto uma viagem a Marte. Agora está feito. Metade de Belo Horizonte estava feliz na última quarta-feira.
O jornalista Inácio Araujo viajou a convite do CineBH. INÁCIO ARAUJO/FOLHAPRESS