Itália deve coroar Giorgia Meloni, sem saber que versão dela chegará ao poder

Assim que a campanha eleitoral na Itália começou, Giorgia Meloni, líder do partido de ultradireita Irmãos da Itália, apressou-se em dizer, em especial a audiências internacionais, que um eventual governo seu não representaria uma ameaça à democracia ou à estabilidade europeia. Dois meses depois, o tom subiu.

Com a intensificação dos comícios, a italiana passou a bradar temas do centro de seu repertório político –um partido com raízes no pós-fascismo. Bloqueio naval contra a imigração pelo Mediterrâneo, incentivo à natalidade, para que a Itália não “desapareça”, e interesses nacionais à frente dos da União Europeia.

“Na Europa, estão um pouco preocupados com a Meloni. E o que vai acontecer? Vai acabar a mamata”, disse ela, em ato eleitoral acompanhado pela reportagem na praça do Duomo, em Milão, neste mês.

Neste domingo (25), os italianos escolhem a composição das duas Casas do Parlamento, o que definirá a formação do próximo governo. São 400 vagas na Câmara e 200 no Senado, 345 a menos, no total, do que na eleição de 2018 –o corte foi aprovado há dois anos. No sistema misto, majoritário e proporcional, um terço das cadeiras é ocupado pelos mais votados, e o restante, por distribuição proporcional.

Nas últimas pesquisas, publicadas há 15 dias, como determina a lei, o partido de Meloni tinha 24,4% das intenções de voto. Com a Liga, de Matteo Salvini, e o Força, Itália, de Silvio Berlusconi, a legenda integra uma coligação de direita que soma 45,9%, 17 pontos à frente da chapa de centro-esquerda liderada pelo Partido Democrático (PD). Em terceiro está o populista Movimento Cinco Estrelas (M5S), com 13,2%.

Às portas da votação, analistas apostam numa vitória da coalizão liderada por Meloni. A vantagem, porém, pode ser mais estreita, devido a uma trajetória de alta que o M5S, do ex-premiê Giuseppe Conte, vinha apresentando, com uma campanha focada no sul do país, mais pobre, e em programas de renda básica.

Prever o resultado é tão difícil quanto desvendar qual Meloni governará caso seja nomeada primeira-ministra. Sua coligação diz que o mais votado fará a indicação, a ser aprovada pelo presidente Sergio Mattarella. Será a moderada dos recados a estrangeiros ou a radical do discurso para correligionários?

“Ninguém sabe bem até que ponto ela quer ir”, diz Gianfranco Pasquino, professor emérito de ciência política da Universidade de Bolonha. “Dizer que vai acabar com a mamata da UE é ruim, porque se isso significa recuperar pedaços de soberania é algo custoso, que pode não ter condições de levar adiante.”

Os olhares internacionais estão voltados à Itália não só pelo que Meloni vinha dizendo em comícios. Seu partido, assim como o de Salvini, é aliado histórico do premiê da Hungria, o ultradireitista Viktor Orbán.

Enquanto a Comissão Europeia tenta apertar o cerco contra a “democracia iliberal” de Budapeste, com a suspensão do repasse de recursos, o Parlamento Europeu recém-aprovou um relatório que classifica o país de “autocracia eleitoral” –entre os votos contrários estavam os de Irmãos da Itália e Liga.

A preocupação do bloco é com a possibilidade de a Itália, num eventual governo Meloni, afastar-se de França e Alemanha, eixo intensificado durante o mandato de Mario Draghi, e se aproximar de Hungria e Polônia. Juntos, teriam força para desequilibrar decisões e engrossar disputas.

Na quinta (22), a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse que, se o cenário caminhar para uma “direção difícil”, a UE tem ferramentas. O comentário, fora dos padrões de neutralidade do cargo, foi recebido como amostra de como a relação Roma-Bruxelas pode azedar. A Itália é a maior beneficiária do plano de recuperação da pandemia, com acesso a EUR 200 bilhões, condicionados a reformas.

Para Pasquino, o risco de uma “hungrização” da Itália, com uma corrosão democrática, é baixo, porque o país possui uma estrutura institucional mais sólida –e porque Meloni, por ora, reúne menos consenso interno do que Orbán. “Mas um risco é a confusão. Os governantes da coalizão podem não saber muito o que fazer, criando mais incerteza no sistema político, o que sempre faz mal à economia.”

A própria campanha evidenciou diferenças entre os sócios da aliança. Meloni, em seu esforço para se mostrar confiável, promete manter a linha Draghi em política externa e, na Guerra da Ucrânia, posiciona-se contra a ação russa e a favor do envio de armas a Kiev. Salvini há poucas semanas discursou contra as sanções a Moscou, e Berlusconi ora fala como europeísta, ora como antigo aliado de Vladimir Putin.

Deputada desde 2006 e candidata ao quinto mandato, Meloni, 45, chega como favorita após seu partido ter obtido 4,3% dos votos há quatro anos. Seu crescimento é creditado ao fato de ter se mantido sempre na oposição; Salvini participou do primeiro governo Conte e da base de apoio de Draghi, como Berlusconi.

Desde que fundou o Irmãos da Itália, em 2012, ela soube montar uma máquina partidária mobilizada e manter coerência em seu discurso, criticando, de fora, medidas de restrição adotadas na pandemia. Em seu programa, adota a linha “Deus, pátria e família”, atraindo o voto conservador desiludido com Salvini.

Meloni é considerada distante da agenda do movimento feminista. Sua plataforma prioriza o auxílio mensal para famílias com filhos pequenos, a redução de impostos de fraldas e mais vagas em creches. A mulher, então, é apoiada somente no papel de mãe, apontam analistas.

Na campanha iniciada às pressas, após a inesperada queda de Draghi, ela se beneficiou da divisão entre a centro-esquerda. Ladeado por forças pequenas, o PD apostou em uma campanha de polarização, menos propositiva. Seu slogan, em cartazes espalhados pelo país, dizia apenas “você escolhe”.

Se vencer, Meloni vai liderar o primeiro governo de ultradireita na Itália desde o fim da Segunda Guerra –há cem anos, Benito Mussolini chegava ao poder. Comandará um país fundador da UE, a terceira maior economia do bloco e membro do G7, mas em um cenário de guerra, crise energética e inflação.

A formação do Executivo e sua confirmação no cargo, que pode levar semanas ou meses após o resultado das urnas –em 2018, foram quase 90 dias–, pode se sobrepor aos trâmites da Lei Orçamentária e aos prazos do plano de recuperação. “Será uma estrada muito difícil para qualquer um que for governar, com problemas que vão exigir colaboração com os europeus”, avalia Pasquino.

O slogan do cartaz de Meloni, acompanhando sua foto com um sorriso confiante, é: “Estamos prontos”. MICHELE OLIVEIRA/FOLHAPRESS

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