Historiador explica por que Valadares se tornou novamente polo de ‘exportação’ de emigrantes ilegais para os EUA

Pesquisador Haruf Salmen Espíndola, doutor em História Econômica e professor na Univale, em Valadares, destaca que o “sonho americano” está presente na história do município desde a década de 40

O número de brasileiros que tentaram entrar nos Estados Unidos de forma ilegal e foram apreendidos pelas autoridades americanas bateu recordes em 2021. Nem a pandemia do novo coronavírus impediu a tentativa de pisar em território norte-americano. Em junho deste ano, por exemplo, 6.678 brasileiros foram barrados na fronteira do México com os Estados Unidos, tentando entrar sem documentação. O número supera todas as estimativas anuais de detenção registradas desde 2005. 

Entre esses brasileiros, 5.700 estavam em unidades familiares, ou seja, migravam acompanhados de parentes, a maioria com crianças. Em Governador Valadares, a cidade mais “americana” do Brasil, pesquisadores e especialistas sobre migração tentam explicar o fenômeno.

Em junho deste ano, por exemplo, 6.678 brasileiros foram barrados na fronteira do México com os Estados Unidos, tentando entrar sem documentação

A cada cinco brasileiros que tentam a sorte de entrar nos EUA de forma ilegal, três são de Governador Valadares ou cidades vizinhas, na região Leste de Minas. Não é preciso ir muito além para chegar a essa conclusão. Basta olhar para os grupos de WhasApp e perceber a quantidade de valadarenses que comentam ou se interessam em ir para os Estados Unidos.

A maioria dos emigrantes motivada por outros valadarenses, que já estão em solo norte-americano e deram certo na empreitada. São pessoas que assumem grandes dívidas para cruzar a fronteira; e se voltam, acumulam mais dívidas. Mesmo assim, o principal motivo nesses últimos anos é o desespero de milhares de pessoas que sonham em ter melhores condições de vida fora do Brasil. Além disso, muitos valadarenses têm sido atraídos pelo discurso “acolhedor” do presidente Joe Biden, que prometeu acabar com a política de tolerância zero de Donald Trump e implementar um sistema de imigração mais “humano”.

Número de deportações assusta

De acordo com reportagem publicada recentemente pelo jornal brasileiro nos Estados Unidos,“Brazilian Times” , mais de um milhão de pessoas foram presas tentando atravessar a fronteira dos EUA com o México de janeiro a junho, segundo estimativas divulgadas pela patrulha de fronteira americana. Somente em junho, foram 178 mil prisões, aumento de 3% em relação ao mês anterior.

Imigrantes ilegais são enviados para o controle de fronteiras – Foto: Divulgação

O levantamento também mostra que a cifra de migrantes viajando com a família cresceu, assim como o de crianças desacompanhadas – foram 15 mil em junho, e agentes calculam que já sejam 600 por dia neste mês. A alta é mais um revés para o governo de Joe Biden em relação à questão migratória. O democrata assumiu a Presidência dos EUA com a promessa de criar novas vias para a imigração legal e melhorar o processo de pedidos de asilo. Já em janeiro, a Casa Branca anunciava como uma de suas prioridades “reverter as políticas de imigração draconianas da administração anterior, de Donald Trump.

A presença de americanos em Valadares

Governador Valadares é conhecida pela grande quantidade de pessoas que emigram para o exterior em busca de melhores condições de vida. Com 83 anos de emancipação política, a cidade ainda carrega o título de “Valadólares”.

De acordo com o pesquisador e historiador Haruf Salmen Espíndola, o começo desse fenômeno nasce na presença americana em Valadares, durante a Segunda Guerra. “Houve aqui uma presença americana a partir da Segunda Guerra. Primeiro, após a criação da Companhia Vale do Rio Doce, com a privatização da Itabira Iron, que pertencia ao Percival Farquhar, e depois houve acordos com Inglaterra e Estados Unidos. Uma empresa de Boston fez reformas na Estrada de Ferro Vitória a Minas (CEFVM) para o transporte de minério de ferro e da mica em grande escala, o que seria capaz de fortalecer a indústria bélica americana na luta contra os nazistas. Cerca de 80% da matéria-prima usada na indústria bélica americana era tirada daqui (Valadares). Com a alta demanda, um acampamento foi construído onde é hoje perto do Shopping. A produção, destinada quase exclusivamente aos Estados Unidos, foi ampliada consideravelmente, tornando-se um negócio altamente lucrativo, que empregava milhares de pessoas. A presença americana também ajudou a erradicar a malária, que era a maior dificuldade dos povoadores e ameaçava a atividade exploratória. Foram criados serviços especiais de saúde, que previam a implementação de saneamento básico e assistência médica”, contou.

Pesquisador Haruf Salmen Espíndola, doutor em História Econômica e professor da Univale – Foto: Eduardo Lima

“A migração sempre foi um fato que ocorreu na história da humanidade. O ser humano sempre migrou de um lugar para o outro em busca de condições melhores. O Brasil, por exemplo, já recebeu uma quantidade enorme de imigrantes europeus no século 19 e em vários países da América Latina. Isso só foi mudar a partir dos anos 60, quando o Brasil começou a mandar pessoas para fora do país, aí que entra Governador Valadares, que foi a cidade pioneira nesse movimento”

Haruf Salmen Espíndola

Haruf conta que o desejo de ir para o exterior se passa pelo fluxo migratório de valadarenses para outros estados no Norte do Brasil. “Na verdade, a partir dos anos 60, Valadares passa a mandar emigrantes não só para o exterior, mas ocorre também o fenômeno da migração interna. Essa região em torno de Valadares passou a mandar pessoas para outras regiões do Brasil, como Rondônia, Acre e Maranhão, por exemplo. A motivação eram as condições de sustentabilidade socioambiental, fechamento de atividades econômicas, como as serrarias, que empregavam muita gente nessa região. As pessoas não viam mais oportunidades de emprego e renda. Então, essas pessoas buscavam outras microrregiões. Por isso se brinca às vezes que se encontra ‘valadarense em todo lugar’. Para se ter uma ideia, até hoje temos uma linha de ônibus interestadual que sai de Mantena, passa em Valadares e vai para Porto Velho (RO). Portanto, quando se pensa em migração para o exterior, tem que se lembrar que existiu o movimento de migração interna”, ressaltou.

“É mais provável um valadarense ter interesse em buscar ‘algo melhor’ nos Estados Unidos do que em Belo Horizonte, que fica aqui perto. Sempre tem um contato, um amigo ou parente, que manda uma mensagem dizendo que, ao chegar lá, é fácil conseguir um emprego. Nenhuma barreira, nenhuma medida de impedimento de imigrantes vai conseguir frear esse número”

Haruf Salmen Espíndola

Mister Simpson, o americano que escolheu ficar em Valadares

De acordo com Haruf, durante as reformas de ampliação da Estrada de Ferro Vitória a Minas, em 1942 , um americano chamado Mr. Simpson foi um dos engenheiros que se mudaram para Governador Valadares para trabalhar nas obras. Quando as obras terminaram e todos os engenheiros voltaram para os EUA, Mister Simpson decidiu permanecer na cidade, junto com a esposa Geraldina Simpson. Ficaram em Valadares e decidiram abrir uma escola de inglês. Depois, Mister Simpson decide criar o Rotary Club em Valadares. Com o passar dos anos, a ideia de ir para os EUA ficou mais atraente para quem vivia em Valadares.

No primeiro momento, ganhar dinheiro, naquela época, não era a principal motivação da viagem: nascidos em famílias de classe média alta, os jovens tinham o segundo grau completo, falavam inglês e eram atraídos pela curiosidade de conhecer a cultura pop norte-americana. Nasce aí uma conexão entre os Estados Unidos e Valadares.

Mister Simpson foi um dos engenheiros que se mudaram para Governador Valadares para trabalhar nas obras da estrada de ferro – Foto: Museu de Valadares

Anos 70 e 80, o desejo de ir para o EUA cresce

A partir de 1960, a produção de mica despencou; ao fim da década, a produção já era bastante irrisória. Com isso, as empresas e investidores do setor madeireiro foram migrando para o norte do Espírito Santo e sul da Bahia. Valadares já não era uma terra de prosperidade.

Segundo Haruf, a partir dos anos 70, a população passou a mudar-se para outros estados em busca de novas fronteiras e empregos. A partir dos anos 80, o número de valadarenses que foram para os EUA explodiu, aí já não era somente de pessoas que pertenciam à classe média alta. “Todo o comércio que vai surgir na rua Israel Pinheiro e na área central de Valadares é de empresários que foram para lá, ganharam dinheiro e voltaram para o Brasil. A época coincide também com uma década recheada de crises econômicas e desemprego. Esse cenário de exportação de valadarenses vai até 1993. A novidade é que naquela época começaram a migrar mais pessoas de diferentes classes”, afirmou.

De acordo com o historiador, a mudança de governo nos Estados Unidos não interfere no aumento ou diminuição de deportações. “À medida que vai apertando, vão sendo criados vários mecanismos de rotas diferentes. Você encontra várias situações. Tem aqueles que vão de avião, chegam lá sem problema nenhum, e tem aqueles que usam as rotas terrestres e correm perigos no caminho. Isso acontece independentemente de governo, seja Democrata ou Republicano. Historicamente, nada impediu essas pessoas de quererem sair do Brasil para entrar nos Estados Unidos. A deportação também sempre esteve presente em qualquer governo”, ressalta.

Os perigos ao cruzar a fronteira parecem não causar medo nos emigrantes

Nem a pandemia do novo coronavírus, nem o risco de ser abandonado na fronteira, ou morrer no caminho, impede as pessoas de tentarem a sorte na terra do Tio Sam. Para conseguir pisar no território norte-americano vale de tudo, desde as formas legais até as ilegais. Muitas das formas ilegais são estimuladas pelos chamados coiotes, como são conhecidos os operadores dessas rotas.

A maioria dos tenta entrar sozinha, pela fronteira do México com os Estados Unidos. No entanto, nos últimos anos, a travessia ficou mais arriscada, à medida que o governo norte-americano ergueu muros em vários pontos da fronteira, forçando os imigrantes a percorrerem trajetos mais longos. Muitos se perdem no deserto e morrem por desidratação. Também há riscos do lado mexicano, onde gangues submetem migrantes a várias formas de violência, como extorsões e estupros.

Existe ainda a prática do “cai-cai”, bastante usada por brasileiros: ou seja, é a viagem de migrantes sem visto com seus filhos menores de idade para garantir que os adultos não sofram deportação imediata na chegada aos EUA, quando se apresentarem às autoridades locais. Um relatório recentemente divulgado pelas autoridades de imigração dos Estados Unidos abordou o aumento da imigração ilegal na administração do presidente Joe Biden. E os dados mostraram que o esquema “cai-cai” voltou com força.

Milhares de pessoas arriscam a vida para chegar ao território norte-americano – Foto: Portal R7

Em entrevista ao DRD em maio deste ano, o delegado Daniel Vianna Ottoni, chefe da Delegacia da Polícia Federal (DPF/GVS) em Governador Valadares, avaliou o cenário da migração, devido ao grande aumento nas solicitações de passaportes em Minas Gerais.

Segundo o delegado, não vale a pena arriscar a vida atravessando a fronteira em busca do sonho de uma vida financeira melhor. “Deixemos bem claro que a Polícia Federal combate o crime de promoção de migração ilegal. As pessoas que promovem isso e lucram em cima de outras pessoas cometem o crime contra a dignidade humana. São valores altíssimos que eles cobram das pessoas, que muitos não têm de onde tirar, mas preferem se arriscar a morrer em uma travessia longa e perigosa, e possivelmente podendo ser deportados. “É um risco grande de correr. Só existe uma forma de emigração, a legal. Por que arriscar na mão de um coiote, que não tem o mínimo interesse pela vida alheia e não oferece garantia de nada?”, questiona.

Haruf acredita que, no atual momento, os brasileiros estão sendo impulsionados não só pela questão econômica que o Brasil atravessa. A falta de esperança no país também influencia na hora da decisão. “A pessoa recebe uma mensagem no WhasApp de um amigo que mora lá e está ganhando dinheiro, que é só chegar lá que consegue emprego. A pessoa alimenta essa esperança e não pensa duas vezes em arriscar. Seja de forma legal ou ilegal, para elas não importa. Mas as pessoas não estão migrando só por causa da relação econômica. É claro que a alta do dólar tem um peso de atrair mais brasileiros para os Estados Unidos. Mas o ponto chave é que , a cada dia que passa, mais pessoas alimentam a ideia de que não têm nenhuma perspectiva de qualidade de vida ou de futuro morando no Brasil, nem de esperança política ou socioeconômica. Por isso, decidem ir para o exterior”, disse.

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