por PEDRO MARTINS E GUILHERME LUIS (FOLHAPRESS) – Era uma tarde qualquer num shopping center quando dois homens se atracaram. Entre socos e chutes, o que vencia a luta se pôs de pé e pisou no rosto do que perdia, estirado no chão.
Digna de filme, a briga ocorreu justamente em frente à bilheteria de um cinema no México porque um deles teria tentado furar a fila ao comprar ingresso para assistir a “Homem-Aranha: Sem Volta para Casa”, que estreia agora nos cinemas.
Embora estivesse em segurança, quem não quis sair de casa também precisou enfrentar o corre-corre. A Ingresso.com, principal bilheteria virtual brasileira, não suportou a quantidade de fãs que acessaram o site e acabou fora do ar. Foi a maior pré-venda que a plataforma já registrou, tendo ultrapassado “Vingadores: Ultimato”, o filme mais visto da história no Brasil, como também ocorreu nos Estados Unidos.
O motivo de tamanho sucesso é, perdoe o trocadilho, uma teia complexa de fatores. Embora não seja o super-herói da Marvel que mais faz dinheiro nos cinemas, o Aranha foi um dos primeiros personagens de Stan Lee a saltar das páginas e também o que mais reencarnou, tendo sido interpretado por Tobey Maguire, Andrew Garfield e Tom Holland.
A possibilidade de que as três encarnações se encontrassem no mesmo filme levou à corrida pelos ingressos. Apesar de os atores nada terem dito, os trailers mostram quase todos os vilões já enfrentados pelo personagem, o que para os fãs é um forte indício do encontro.
Os comerciais ainda dão a entender que o filme é atravessado por uma bagunça no chamado “Multiverso”, como é conhecido o universo de realidades paralelas da Marvel, que, ao brincar com elementos da física, permite que um mesmo personagem exista de maneiras diferentes –e, por que não, com rostos diferentes. Outro fator é o carinho que os fãs têm pelo personagem, que neste filme tem sua identidade revelada e vê os desafios de equilibrar a vida de super-herói com a de estudante se intensificarem.
“Antes, os adolescentes eram só ajudantes dos heróis. Quando Stan Lee criou o Homem-Aranha, acabou colocando o leitor dos gibis como protagonistas”, diz o jornalista Fábio Gomes, que editava a seção de quadrinhos do Omelete, o principal site do país dedicado a super-heróis.
“Enquanto Homem de Ferro é um playboy bilionário, Thor é um deus e Capitão América é o resultado de um experimento criado para representar uma nação, o Aranha tem dificuldades na escola, não consegue chegar na garota por quem é apaixonado, ou seja, é um adolescente qualquer”, acrescenta Gomes, que hoje faz parte do canal Entre Migas, que discute cultura pop no YouTube.
Este é, desde o início da pandemia, o primeiro filme com uma comunidade de fãs tão grande a estrear nos cinemas, que ainda recebe grande atenção do público em geral devido a mesma demanda reprimida por entretenimento que estaria fazendo esgotar ingressos para shows, festivais e baladas Brasil afora.
“As pessoas não veem a hora de ir a uma pré-estreia fantasiados e comer pipoca em baldes personalizados”, diz Pedro Curi, que pesquisou os hábitos de consumo de fãs brasileiros para escrever sua tese de doutorado e hoje coordena os cursos de jornalismo e cinema da Escola Superior de Propaganda e Marketing, a ESPM, em São Paulo.
“O show de uma banda vende bem. Mas quando você promete que vai colocar três bandas muito boas num mesmo festival, as pessoas fazem de tudo por um ingresso. Este é como se fosse o Rock in Rio do Homem-Aranha”, diz Curi.
Para além disso, existe o imbróglio jurídico sobre o qual está calcado o encontro –ou melhor, o possível encontro– das três gerações do personagem. Polêmica, afinal, desperta atenção.
A Disney, que comprou a Marvel e seus heróis, não é a dona do Homem-Aranha. Quem controla a vida do personagem nos cinemas é a Sony, que o adquiriu no fim dos anos 1990, quando o caixa da Marvel não ia bem e, para pagar as contas, Stan Lee precisou vender algumas de suas criações.
É por isso que o Aranha não é visto, por exemplo, nos primeiros “Vingadores”. A Disney não podia escalar o personagem para seus filmes e séries interligadas do MCU, a sigla em inglês pela qual é conhecido o Universo Cinematográfico Marvel.
Tudo mudou em 2015, quando a Sony passou a emprestar o Aranha à Disney e, em troca, ter o direito de usar os heróis que pertenciam à casa do Mickey nos filmes do aracnídeo, caso do Homem de Ferro, que virou um tutor de Peter Parker.
No ano retrasado, o acordo quase ruiu. Ninguém sabe o motivo ao certo, mas as especulações de jornalistas especializados na cobertura de cinema eram de que a Disney estava insatisfeita com a fatia de lucro que obtinha com os filmes da Sony.
Também não se sabe bem como a briga foi resolvida. Há quem diga que os executivos se sentaram para lavar a roupa suja num encontro que teve a presença –e até o choro– de Holland. Seu futuro, afinal, dependeria dessa conversa. Fato é que os estúdios se resolveram e, desde então, vivem em paz.
É ainda por esse imbróglio que o Homem-Aranha reencarnou tantas vezes. Para não perder os direitos sobre o personagem, a Sony não pode deixar de levar o herói aos cinemas por mais do que cinco anos. Prova disso é o calendário de lançamentos. O último filme protagonizado por Maguire foi lançado em 2007, o primeiro de Garfield saiu em 2012, e a estreia de Holland num filme solo foi em 2017. A regra é levada tão a sério que, anos atrás, antes de Holland ser escalado, houve rumores de que a Sony cogitava fazer até um filme dedicado à tia May, a tutora do herói. Bastava que ele aparecesse na história para o estúdio garantir a manutenção dos direitos sem precisar criar outra franquia, considerando que a última, a de Garfield, não tinha se saído tão bem nas bilheterias.
Criar outra franquia também poderia irritar os fãs saudosistas, que já não tinham recebido tão bem Garfield, por terem a imagem de Maguire ainda fresca na mente. Mesmo considerado velho para o papel de um personagem que nos gibis costuma aparecer como adolescente, Maguire virou o rosto do Homem-Aranha para quem cresceu nos anos 2000 –não só para os fãs, mas para o público em geral.
O ator fez o Aranha que mais sofre entre os três. É o nerd excluído que, enquanto tenta salvar a vizinhança, precisa se preocupar em pagar boletos. Boa parte dos fãs se identifica e gosta dessa interpretação, embora reconheçam que Maguire não imprima ao personagem muito humor, uma de suas principais características nos gibis.
Ocorre que, se faltou comicidade a Maguire, Garfield exagerou e fez a versão mais descolada do personagem, ou seja, a que soa mais distante do nerd sofredor dos gibis e, não à toa, não é a favorita de quase nenhum fã.
A interpretação mais recente, a de Holland, foi também a que mais sofreu ataques. “Este é o Homem-Aranha Nutella, que tem até um sugar daddy para o bancar”, dizem alguns fãs na internet, que ainda criticam MJ, a personagem de Zendaya, de ser “pouco feminina”.
É um comentário que outra parte dos fãs consideram machista e racista, visto que é a primeira vez que o par romântico do protagonista é interpretado por uma atriz negra e, diferentemente do que ocorreu com Kirsten Dunst, a parceira de Maguire, não tem seus os e os quadris explorados à exaustão pelas câmeras.
O descontentamento, no entanto, não foi suficiente para prejudicar a bilheteria dos dois primeiros longas-metragens de Holland e, ao que indica a batalha vista em frente ao cinema mexicano, tampouco deve afetar a do próximo filme. Com ou sem o encontro das três gerações, esta deve ser a produção que mais arrecadará dinheiro neste ano, capaz de, enfim, decretar a volta aos cinemas.