GOVERNADOR VALADARES – Entre março e novembro a relação do valadarense com o rio Doce é de coexistência pacífica. É de tal forma que se lembrar que rio é rio se torna uma questão de tempo, mais especificamente, de dezembro a fevereiro. Sendo o rio Doce uma manifestação da força da natureza, a ingenuidade humana parece subestimar o temperamento expansivo desse grande curso de água, que no período chuvoso transborda as margens e toma conta do espaço na qual há um certo tempo reivindicamos posse.
“Nós temos enchentes no mundo inteiro. Em todo o mundo nós temos eventos de desastres naturais com cheias e enchentes. A cidade de Governador Valadares foi construída à margem do rio Doce. Então nós ocupamos o espaço do rio. Há estudos sim, há trabalhos nesse sentido [para amenizar os impactos das enchentes na população ribeirinha], mas não é uma coisa de solução simplista, é muito complexo evitar-se que haja enchentes no caso específico em Governador Valadares”, disse o coordenador da Defesa Civil em Governador Valadares, major Adelson Ferreira Bento.
“Em Valadares há uma questão específica, onde se tem um relevo muito plano e praticamente todo o município se expandiu às margens do rio Doce e isso interfere muito no impacto da cheia”, explicou Bernardo Oliveira, pesquisador em Geociência do Serviço Geológico do Brasil (SGB/CPRM).
Sendo assim, em pleno 2023, já não é novidade, mas sim uma questão de aguardar o inevitável: a chuva vai cair ao longo da extensão do rio Doce, o nível do rio vai subir, a cheia vai acontecer e aí a água dá o seu jeito de encontrar o caminho para além do leito. Não é à toa que deram o nome para isso de ciclo hidrológico.
Dessa perspectiva também é fundamental olhar para cima e acompanhar os movimentos caóticos das nuvens. Isso porque um volume de chuva concentrado em curto período de tempo pode mudar completamente o temperamento do rio. E esse ano as projeções meteorológicas já apontam um alerta para a precipitação no mês de dezembro na Bacia do Rio Doce.
“Efetivamente a estação chuvosa começou em dezembro, em vez de começar em outubro ou novembro. Esse retardamento foi provocado pela influência do El Niño, então, com isso, as chuvas que eram para acontecer nos meses anteriores estão acontecendo a partir de dezembro e estão mais intensas. A precipitação prevista no Sul da Bacia é entre 360 mm e 460 mm e na região de Valadares é de 260 mm e 300 mm. O Sul da região da Bacia compreende a região de Ponte Nova, Ouro Branco e Ouro Preto que influencia diretamente no nível do rio Doce em Governador Valadares”, ressaltou o professor Fulvio Cupolillo, da área de Geografia/Climatologia do Instituto Federal em Governador Valadares.
Rio Doce é monitorado desde 1997
Quando a coexistência pacífica dá espaço para uma disputa de território entre a natureza e o ser humano é comum o raciocínio percorrer o caminho de que quem invade o ambiente é a água. Mas isso seria apenas dar o predicativo equivocado para o temperamento expansivo do rio Doce.
Contra a força da natureza, no momento presente o que resta é um intenso trabalho de prevenção e monitoramento do rio. Daí os predicativos se aplicam de forma coerente como forma de descrever as ações paliativas que buscam evitar que tragédias aconteçam no município.
O sistema Alerta Rio Doce, por exemplo, é operado desde 1997, quando registrou uma cheia histórica com grandes impactos, principalmente para Governador Valadares. Desde então o nível do rio Doce, ao longo da sua bacia hidrográfica, é monitorado. Isso também inclui a atualização meteorológica (da quantidade de chuva) e da vazão do rio.
De acordo com o Serviço Geológico do Brasil, o monitoramento se intensifica durante o período chuvoso, quando se iniciam as emissões de boletins periódicos com informações da cota do rio Doce. Os dados coletados por meio do monitoramento são repassados para as forças de segurança do município, Defesa Civil e também para os veículos de imprensa. Essa comunicação é fundamental para auxiliar a população ribeirinha antes, durante e depois de um período de enchente.
Assim também as informações do Alerta Rio Doce servem como base para articulação do governo na atuação de medidas que visam diminuir o impacto da inundação, tanto na perda de vidas quanto os danos materiais para a população. Com o monitoramento é possível avisar com até 72 horas de antecedência o risco de enchente.
É dentro desse contexto que a atuação da Defesa Civil se divide em dois momentos. Durante todo o ano o foco é mapear as áreas no município com riscos geológicos. Essas regiões são locais que durante o período chuvoso há a possibilidade de desabamento e inundação pela cheia do rio Doce. Ainda segundo a Defesa Civil, as famílias que moram em áreas de risco são comunicadas sobre a situação, e, em casos de vulnerabilidade, elas são cadastradas em programas sociais para receber suporte e atendimento. Em situações mais graves, a Defesa Civil precisa interditar o local e realocar os moradores em uma nova moradia fora de áreas de risco. Entre esses os serviços disponíveis encontram- se, por exemplo, o aluguel social e o programa habitacional.
Quando começa o período da estação chuvosa, a partir do mês de outubro, as ações preventivas se intensificam, informou a Defesa Civil. A ideia aqui é alinhar com as forças de seguranças e Poder Público um plano de contingência para atuação durante a ocorrência de desastres relacionados às chuvas e a elevação do nível do rio.
“No final de outubro nós tivemos a reunião na qual os atores que trabalham nessa área de cheias deixaram todos os gatilhos prontos para que em caso de enchente em Valadares termos abrigos preparados, situação de suporte das famílias para mudanças, alimentação. Todo o trabalho preventivo em caso de enchente já está elaborado e pronto para ser acionado”, informou o coordenador da Defesa Civil do município.
Nesse período onde o temperamento do rio é expansivo, a cota de inundação se torna apenas uma questão numérica. A diferença de uma enchente para outra será de centímetros. Bom para os livros de História e registros científicos, mas nem tanto para a população ribeirinha que sofre com a cheia do rio. E falando de história, o nosso retrospecto não é favorável.
“Pela cidade ser plana e a ocupação urbana próximo ao rio; o que torna a cheia algo muito comum para Governador Valadares. O que se destaca nessa recorrência é o pico do tempo de cheia. As cheias nos últimos anos realmente têm sido maiores. Apesar da cheia histórica de 1997, das 10 maiores cheias [registradas] do rio em Governador Valadares, três delas aconteceram nos últimos anos: 2020, 2022 e 2023. Isso a gente também está observando em outros locais do mundo, os eventos extremos estão realmente acontecendo com uma recorrência maior. A condição de Valadares é que sempre inunda pelas condições do relevo, a inundação é uma questão natural, mas, apesar disso, os picos de cheia e as cotas mais elevadas têm acontecido nos últimos anos”, destacou Bernardo Oliveira.
A lama de Mariana interfere nas cheias?
Revisando a história recente, um outro equívoco de raciocínio, que ano após ano se torna o argumento de justificativa a fim de responder sobre o pico das enchentes no município, é sobre o assoreamento do rio. Depois do rompimento da barragem em Mariana, em 2015, na qual o rio Doce foi invadido por lama de resíduos de mineração, apesar dos inúmeros impactos sociais, econômicos e ambientais, não há embasamento científico que indique que a tragédia/crime ambiental esteja relacionada com as enchentes em Valadares.
“O leito do rio Doce é muito arenoso, então, se tem uma modificação do leito recorrente é uma questão natural do rio. Anualmente, a gente faz um levantamento e até então nós não conseguimos observar nenhum impacto direto proveniente do rompimento da barragem que possa ter interferido na inundação. Eu não tenho como falar pela calha toda do rio que está próximo a Valadares, mas na estação onde a gente monitora não identificamos essa interferência”, explicou o pesquisador em Geociência do Serviço Geológico do Brasil.
No fim, a história desse relacionamento entre valadarenses e o rio Doce é marcada por altos e baixos. Entre março e novembro coexistem pacificamente. É de tal forma que se lembrar que rio é rio se torna uma questão de tempo, mas especificamente, de dezembro a fevereiro. O ciclo dessa relação se compreende na repetição da ingenuidade humana na compreensão da natureza. Aí está a insistência em subestimar o temperamento expansivo desse grande curso de água que no período chuvoso transborda as margens e toma conta do espaço na qual há um certo tempo reivindicamos posse.
Para o problema líquido da enchente em Governador Valadares é preciso encontrar soluções mais sólidas para o futuro. “Uma ação concreta para que isso não ocorra está relacionada ao planejamento urbano. É preciso ter um planejamento urbano eficiente, um plano diretor, uma lei de uso e ocupação do solo, que prevê essas áreas que são suscetíveis a inundação para evitar a ocupação nesses lugares. As áreas que já estão ocupadas é necessário ter um plano de desocupação, o que não é uma questão simples. Porque envolve não só recursos, mas também toda uma questão jurídica e cultural das pessoas que já vivem naquelas áreas. É uma questão complicada, mas seria uma solução mais definitiva para que a população não sofra os impactos dessas cheias, porque elas vão ocorrer. É uma questão natural as cheias do rio”, disse Bernardo Oliveira.
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Sempre o mesmo discurso, muita teoria e pouca prática! Isso sim é recorrente!
Sempre o mesmo discurso. Muita teoria e pouca prática! Até quando?