VIVTORIA DAMASCENO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Eu acho que, além de queimar estátua ser uma coisa estúpida por si, ainda por cima queimaram a estátua errada”, afirma Eduardo Bueno, 63, jornalista e escritor de mais de 30 livros de história do Brasil. “O Borba Gato não foi um caçador de índio”, diz.
Conhecido como Peninha, o escritor não contesta a violência brutal promovida contra indígenas e negros nas expedições dos séculos 16 e 17, as chamadas bandeiras. Afirma, porém, que Borba Gato não se envolveu nas caçadas e na matança.
“Mas não por bondade. Não participou porque não calhou de participar, porque chegou em um outro momento histórico. Se não, evidentemente ele teria participado”, diz Peninha, dono de um canal de história do Brasil no YouTube com mais de 1 milhão de inscritos.
Em um vídeo postado nas redes sociais, o gaúcho, que vive em São Paulo desde a infância, afirma que o bandeirante viveu cerca de 20 anos de forma pacífica em meio a tribos indígenas, contestando a versão de diversos historiadores.
Os comentários vêm a propósito do incêndio na estátua do Borba Gato em Santo Amaro, zona sul de São Paulo, no sábado (24). O grupo que ateou fogo afirmou que o bandeirante contribuiu ativamente para o genocídio da população indígena.
Peninha confronta essa visão, bem como o método: “Sou totalmente contrário ao vandalismo e ao ataque aos monumentos”, diz. Defende, por outro lado, uma discussão sobre esses personagens históricos e afirma que, num segundo momento, a retirada das estátuas pode ser feita.
PERGUNTA – Como que o senhor avalia esse movimento de retirada ou substituição de símbolos que exaltem pessoas ligadas à escravidão, como bandeirantes?
EDUARDO BUENO – A retirada em um segundo momento pode ser feita, mas eu sou totalmente contrário ao vandalismo e ao ataque aos monumentos, porque na maior parte das vezes eles são atacados por pessoas que simplesmente não conhecem a história daqueles personagens. Eu sou francamente favorável a você ter essas estátuas polêmicas e, a partir delas, você estabelecer uma discussão sobre esses personagens. Vamos discutir Borba Gato. Vamos discutir Raposo Tavares.
Eu acho que essas figuras têm que ser discutidas. Você não pode derrubá-las no final sem nem saber quem elas são. É óbvio que eu não sou a favor, nem um defensor do Borba Gato. Só que é o seguinte: o Borba Gato não foi um caçador de índio. O Borba Gato esteve muito mais ligado ao chamado ciclo do ouro, que é uma falácia chamar assim, mas ele é mais ligado à corrida do ouro dos bandeirantes. Então eu acho que, além de queimar estátua ser uma coisa estúpida por si, ainda por cima queimaram a estátua errada.
P. – O senhor disse ser contra o ataque, mas que a retirada dos símbolos pode ser feita em um segundo momento. Existem muitos projetos de lei que defendem, por exemplo, que estátuas que homenageiam escravagistas sejam colocadas em museus. Outras pessoas defendem que o espaço fique vazio, o que também é simbólico. O que o senhor pensa a respeito disso?
ED- O Brasil possui muitos monumentos em homenagem a pessoas que mataram, estupraram. A história do Brasil não é pacífica. É horrível. É bom o Brasil recordar o tempo inteiro que nunca foi um país manso e pacífico. Sempre foi um país de desigualdade, sempre foi um país de injustiça, sempre foi o país do desequilíbrio social. Sempre. Essas estátuas até refletem isso. A proposta de tirá-las da rua e levá-las para museus, eu também acho que é a melhor. Só que, antes de fazer isso, tem que ter um grande movimento em torno da estátua para que cada vez mais pessoas saibam quem foram aquelas figuras.
Só que, no caso dos bandeirantes, é muito importante que São Paulo saiba como os bandeirantes são uma invenção da historiografia paulista. São Paulo inventa os bandeirantes. Nem o termo bandeirante era usado na época, eles eram chamados de paulistas ou de sertanistas.
É evidente que é um momento em que os bandeirantes têm que ser ressignificados. Mas essa discussão tem que estar em pauta na TV, em séries. Não adianta essa discussão ser no Facebook, no Instagram ou no YouTube. Além da fragilidade dessas mídias no sentido de uma real reflexão, elas sempre geraram polarização.
P. – Na sua visão, Borba Gato não foi caçador de indígenas, mas muitos historiadores questionam essa versão. Muitos defendem que as expedições que buscavam apreender indígenas também encontravam pedras e metais preciosos e que as que tinham como finalidade encontrar minérios também apreendiam e escravizavam indígenas.
ED – Eu concordo com isso. A questão é que esses índios da região na qual o Borba Gato estava não eram os índios “afeitos” à escravidão. Seu genro, Fernão Dias, tinha participado junto com o Afonso Tavares da destruição das missões jesuíticas e do aprisionamento em larga escala dos Guaranis, que eram um povo indígena mais afeito ao trabalho agrícola e ao trabalho coletivo.
Os índios da região de Minas Gerais onde o Borba Gato circulava eram os chamados índios de língua travada, os índios não tupis, que você não conseguia reduzir à escravidão com lucro efetivo. Ele já tinha desistido de escravizá-los, mas não por uma questão de bondade ou não porque os bandeirantes não escravizavam, mas porque eles não viam utilidade em escravizá-los.
Na minha opinião, não é uma questão de ele ser bonzinho ou não, circunstancialmente ele não precisou escravizar índios. Ele estava lá por uma busca mineral.
P. – Borba Gato, então, não participou da escravização e do genocídio indígena, na sua visão. Não, mas não por bondade.
ED- Não participou porque não calhou de participar, porque chegou em um outro momento histórico. Se não, evidentemente ele teria participado.
P. – As bandeiras, então, tiveram escravização, morte de indígenas, mas houve algumas exceções em que isso não ocorreu, e o Borba Gato estava nessa exceção?
PENINHA – Não, eu acho que a ação delas foi obviamente devastadora. Mesmo essas ligadas ao dito ciclo de ouro causaram um grande impacto ambiental, desmatamento. O ciclo do ouro e da mineração no Brasil é de uma crueldade brutal.
E o fato de indígenas que participaram do início dela já estarem extintos por doença ou pela ação predatória dos bandeirantes fez com que fossem levadas grandes quantidades de escravos africanos para participar do ciclo seguinte. Como todos os outros ciclos econômicos brasileiros, embora eu considere um anacronismo chamar assim, como do Pau Brasil, do açúcar, todos foram de uma crueldade brutal. Então em nenhum momento eu quero ressignificar a violência inerente a esse processo.
P. – O senhor diz que Júlio Guerra, autor da escultura, queria contestar a estatuária dos anos 20 que louvava os bandeirantes.
ED- Guerra ganhou o concurso público para a comemoração do 4º Centenário de Santo Amaro, porém, porque sua proposta de construir um bandeirante se ajustava ao imaginário regional paulista, algo que o edital ratificava. Eu não sou um especialista em Borba Gato nem em Júlio Guerra. A leitura que eu faço é de um cara que, além de tudo, fez a [escultura de] Mãe Preta e fez uma estátua de ladrilho, com trilhos de trem, é um cara que, na minha opinião, está dando no mínimo um recado velado ou de deboche ou de contestação.
P. – No seu vídeo postado nas redes sociais, o senhor diz que o grupo ateou fogo em uma obra de arte. Esse é o argumento de muitas pessoas. Mas em entrevista à Folha de S.Paulo em 1963, Júlio Guerra disse não ter certeza de que se tratava de uma obra de arte. Eu acho que isso comprova esse lado de ressignificação, de deboche, de quase contestação. O artista, porque ele era o artista, ele vivia disso, dizer que não tem certeza se era uma obra de arte?
ED- Na minha opinião é bater o martelo de que sim, é uma obra de arte. Ainda mais de que o próprio autor não tenha certeza de que era.