LUCAS BRÊDA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O cantor e compositor jamaicano Jimmy Cliff, pioneiro do reggae e um dos responsáveis por popularizar a música de seu país ao redor do mundo, morreu aos 81 anos, segundo comunicado publicado nesta segunda-feira (24) em sua conta oficial no Instagram.
A nota, assinada por sua mulher, Latifa, informa que o artista “cruzou para o outro lado após uma convulsão seguida de pneumonia”. No texto, ela agradece a familiares, amigos, artistas, colegas de trabalho e fãs que acompanharam a trajetória do músico.
“Seu apoio foi sua força ao longo de toda a carreira. Ele apreciava profundamente cada fã”, escreveu. Latifa também mencionou o trabalho da equipe médica que cuidou do cantor durante o período crítico.
O comunicado pede respeito à privacidade da família e afirma que mais informações serão divulgadas posteriormente. Jimmy Cliff ficou conhecido por clássicos como “Many Rivers to Cross” e “The Harder They Come”, e por ter sido fundamental no processo de globalização do reggae.
Nascido em Saint James, em 1944, Cliff viveu de perto os movimentos que fizeram a música jamaicana se transformar e ser reconhecida ao redor do mundo, a partir dos anos 1950. Ele começou a carreira no início da década de 1960, depois de se mudar para Kingston, a capital do país, aos 14 anos.
Algumas de suas músicas já faziam algum sucesso na capital, mas Cliff só ficou mais conhecido quando conseguiu chamar a atenção do produtor Leslie Kong. Na época, a família do empresário de ascendência chinesa tinha uma loja de discos chamada Beverley’s, e foi o cantor quem o convenceu a gravar artistas locais – a partir disso Kong se tornou um dos produtores mais importantes na história do reggae.
São dessa época músicas como “Miss Jamaica”, “Hurricane Hatty”, “One Eyed Jacks” e “Trust no Man”, entre outras, que captavam tanto o ska, que crescia desde a década de 1950, quanto o rocksteady, estilo que se estabeleceu naquela década de 1960.
À Folha de S.Paulo, Cliff disse que essa revolução na música acompanhou o processo de independência da Jamaica, que até 1962 era colônia britânica. “A música na época era o ska, que expressava o espírito das pessoas, que estavam animadas. Tipo olha, somos independentes. Depois daquilo, a música ficou mais lenta, o rocksteady. Era assim que independência é essa?’. Não somos independentes! Nada melhorou.”
Foi quando veio o reggae Cliff, inclusive, esteve na primeira audição de Bob Marley em estúdio. “Começamos a buscar algo que nos tornasse independentes. Olhamos para a África. E aí veio o reggae, uma música entre o rocksteady e o ska. E junto veio o rastafari, que é da cultura indígena jamaicana.”
Em 1964, Cliff chamou a atenção da Island Records, gravadora britânica que se tornou a vitrine desses artistas jamaicanos em Londres e, depois, para o resto do mundo. Ele se mudou para a capital da Inglaterra aos 20 anos e se tornou um dos primeiros cantores de seu país a lançar um disco, seu primeiro, por um selo britânico.
“Hard Road to Travel”, o primeiro álbum de Cliff, de 1967, foi feito para um público britânico consumidor de rock, já que o reggae era desconhcido por lá, e trouxe uma influência forte também do soul e do funk da Motown dos Estados Unidos. O jovem jamaicano foi a Londres cheio de ambições. “Ia ser maior que Beatles e Stones, mas não aconteceu”, ele disse a este repórter.
Foi com este disco que o jamaicano veio ao Brasil pela primeira vez e estabeleceu uma relação duradoura com o país. Ele chegou em 1968 para cantar no Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro. Ia ficar duas semanas, mas acabou ficando por quatro meses e ainda lançou o disco “Jimmy Cliff in Brazil”, de 1968 com três versões de canções brasileiras, incluindo “Andança”, conhecida na voz de Beth Carvalho, que virou “The Lonely Walker” com o jamaicano.
As experiências no país motivaram duas de suas músicas mais conhecidas ”Wonderful World, Beautiful People”, a partir da memória do Maracanãzinho explodindo de alegria ao vê-lo cantar mesmo mal o conhecendo, e “Many Rivers to Cross”. Esta segunda tem relação com o que Cliff tinha ouvido sobre o racismo no Brasil.
Segundo o cantor disse em diversas entrevistas, ele ouviu falar que não havia discriminação contra os negros, que conviveriam em paz com os brancos. Ao chegar aqui, Cliff percebeu que apesar da beleza superficial, havia um segredo por trás dessa suposta harmonia.
“É um país lindo, tudo é bonito, mas existe um segredo por debaixo disso. Os pretos não lutavam contra as pessoas que os oprimiam. Eu entrava no banco e não via uma pessoa negra. Era opressor de tantas maneiras que eu não conseguia entender como eles não se revoltavam”, ele afirmou a este jornal.
Aquele foi um momento de virada na carreira do artista. A música “Wonderful World, Beautiful People” chegou ao sexto lugar das paradas britânicas em 1969, rodou nos Estados Unidos e se tornou um dos primeiros sucessos daquela então nova música jamaicana fora da Jamaica. Também alavancou o disco de mesmo nome.
Cliff também abriu caminho no cinema. Ele captou a subcultura de gangues de Kingston para dar vida a Ivanhoe “Rhyging” Martin, um dos mais famosos rudeboys do país, no filme “The Harder They Come” ou “Balada Sangrenta”, de 1972.
O cantor viveu o auge das disputas entre gangues, muitas delas armadas, na capital jamaicana, e já disse que quase permaneceu nessa vida. Os rudeboys eram jovens das camadas mais pobres, que ouviam ska e rocksteady, tinham uma postura combativa de nunca abaixar a cabeça e resolviam seus problemas através da violência incluindo as rivalidades entre os donos de sound systems e produtores de discos da época.
Além de captar esse estilo de vida, o filme do diretor Perry Henzell ficou famoso pela trilha sonora, tida como uma das obras fundamentais para tornar a música jamaicana conhecida no resto do mundo. Cliff cantou boa parte das faixas, e se destacou especialmente pela otimista “You Can Get it if You Really Want”.
Dali em diante, o artista seguiu como uma espécie de embaixador daquela cena musical vibrante da Jamaica na década de 1970, já com Bob Marley e o reggae famosos mundo afora. Em 1975, quando seu filme saiu nos Estados Unidos, ele cantou na temporada de estreia do programa “Saturday Night Live”, e depois viajou à África, sob influência do escritor jamaicano radicado na Nigéria, Lindsay Barrett.
Cliff na época se converteu ao islã, e essas experiências acabaram dando o tom do disco “Give Thankx”, de 1978. Criado num lar cristão, ele disse ao jornal jamaicano Jamaica Star que não encontrou a verdade na religião.
“Eu segui e estudei o islã por um tempo, mas ainda não encontrei a verdade. Não satisfez minha alma. Então, fui para a Índia, cheguei a morar em um Ashram [um local para retiro espiritual] e estudei o hinduísmo. Por conta própria, pesquisei sobre o budismo. Eu os chamava de escolas [de conversão]”.
A partir dos anos 1980, ele ficou realmente popular no Brasil. Fez uma turnê memorável com Gilberto Gil, lotando arenas e estádios no país, conforme o tropicalista absorvia e divulgava o reggae.
Ele apareceu no Chacrinha e virou trilha de novelas entre elas “Love I Need”, em “Água Viva”, de 1980, “Reggae Night” em “Voltei pra Você”, de 1983, “Hot Shot” em “Ti Ti Ti”, em 1985, “Now and Forever” em “Brega & Chique”, de 1987, e “Rebel In Me” em “Rainha da Sucata”, em 1990. Também tocou na segunda edição do Rock in Rio, em 1991.
O músico baiano Lazzo Matumbi se tornou percussionista de Cliff nessa época. “Ele aqui não era tratado como estrela, como uma superestrela aqui”, ele afirmou a este repórter há quatro anos. “Em Paris e Nova York, era tratado como estrela.”
O baiano recordou à Folha de S.Paulo uma história de como Cliff valorizava a música de sua terra. Era 1991, no Festival de Jazz de Montreux, e o palco abrigava uma jam session de lendas como Ray Charles, Chaka Khan, George Benson, Al Jarreau e Paul Jackson Jr., entre outros.
“Eles saíram do palco, deixou aquele vazio. No alto-falante disseram, senhoras e senhores, não vão embora ainda porque temos a presença do Mr. Jimmy Cliff. E eu, como brasileiro, vendo toda nossa história negra ser massacrada e oprimida, falei a um amigo, e agora, como sobe no palco?. Aí o baixista da banda me disse, ei, Lazzo, relaxe meu irmão, a gente toca música original da Jamaica. Aquilo me deu um tesão! A gente não tem esse tesão aqui no Brasil.”
Cliff colaborou com diversos artistas brasileiros, incluindo Cidade Negra, Titãs, Margareth Menezes, Ara Ketu e o Olodum antes de Michael Jackson e Paul Simon. Também morou na Bahia, onde criou sua filha brasileira, Nabiyah Be. Ela nasceu em 1992, fruto da relação do músico com a psicóloga e artista plástica Sônia Gomes, que o cantor conheceu em uma cerimônia de ayahuasca na praia, em Salvador.
Em paralelo, Cliff empilhou hits ao redor do mundo. O disco “The Power and the Glory”, de 1983, emplacou “Reggae Night”, “Roots Woman” e “Journey”. No ano seguinte, com o LP “Cliff Hanger”, do sucesso “Now and Forever”, ganhou o primeiro de seus dois prêmios Grammy de melhor álbum de reggae o segundo foi com “Rebirth”, de 2012, que tem produção de Tim Armstrong, do Rancid.
Ao longo da carreira, Cliff se distanciou do reggae, dub, ragga e dancehall que eram feitos na Jamaica. Desde cedo, ele morou fora do país, e partiu da música criada lá para fundi-la ao rock e ao pop que eram mais reconhecidos ao redor do planeta.
Ele arriscou à Folha de S.Paulo algumas explicações de como uma ilha tão pequena pôde fazer uma música tão influente. “Foi um país em que os escravizados se rebelaram contra os opressores. É o espírito de você sabe quem eu sou?’. ‘Não vou abaixar a cabeça para você. Sempre tivemos isso. A Inglaterra teve que nos dar um pedaço de terra, porque não podiam nos controlar. A música sai desse espírito. Mesmo pequenos, influenciamos o mundo.”
Bruce Springsteen regravou a música “Trapped”, de Cliff, e a tornou ainda mais conhecida depois que ela fez parte do álbum “We Are the World”, de 1985. Em 1993, ele voltou a fazer sucesso com uma versão de “I Can See Clearly Now”, de Johnny Nash, que integrou a trilha do filme “Jamaica Abaixo de Zero”.
Ao longo da carreira, Cliff trabalhou com diversas estrelas da música internacional, incluindo os Rolling Stones, Sting, Joe Strummer, Elvis Costello e, mais recentemente, Wyclef Jean, rapper e produtor que integrou o Fugees. Eles colaboraram no último disco do jamaicano, “Refugees”, de 2022.
Ele tinha planos de escrever dois livros uma autobiografia e outro volume sobre a história do reggae, dando luz a personagens menos conhecidos, como o influente engenheiro de som King Tubby.
Cliff é um dos poucos músicos, ao lado de Bob Marley e outros, a receber a Ordem de Mérito da Jamaica. Ele foi agraciado em 2003, pelo então primeiro-ministro do país, Andrew Holness, que chamou o cantor de “um verdadeiro gigante cultural cuja música levou o coração da nossa nação para o mundo Jimmy Cliff contou nossa história com honestidade e alma. Sua música elevou as pessoas em tempos difíceis, inspirou gerações e ajudou a moldar o respeito global que a cultura jamaicana desfruta hoje.”
Em 2010, ele também passou a fazer parte do Hall da Fama do Rock and Roll, nos Estados Unidos.
Cliff deixa a esposa, Latifa Chambers, e os filhos Aken, Lilty e Nabiah Be.











