O governo Jair Bolsonaro quer esvaziar a Comissão de Ética Pública da Presidência da República e impedir que ela recomende a exoneração de servidores da cúpula da administração federal que cometeram desvios de conduta.
A medida faz parte de um estudo em curso na CGU (Controladoria-Geral da União), que prepara uma reestruturação do sistema de prevenção à corrupção no governo.
Pessoas que acompanham as discussões afirmam que o plano desidrata a comissão presidencial, que também perderia a função de coordenar e supervisionar os demais órgãos de análise de denúncias por violações éticas e conflitos de interesse praticados por servidores federais.
Com a mudança, o papel passaria para a CGU, que se tornaria uma superpasta, exercendo influência sobre centenas de comissões de ética espalhadas por ministérios, secretarias, autarquias e até universidades.
O atual presidente da CEP (Comissão de Ética Pública), Paulo Henrique Lucon, considera que o órgão federal precisa ser imparcial e, para isso, desvinculado de qualquer ministério. Ele disse que ficou sabendo da discussão sobre uma mudança, mas que não foi informado oficialmente sobre o tema.
“Essa proposta tem de ser feita com muito cuidado, porque isso importaria no esvaziamento de uma comissão que existe há 20 anos”, afirmou. “Isso representaria um tremendo retrocesso.”
Ainda que seja vinculada à Presidência da República, a CEP é um órgão independente, formado por sete integrantes com mandatos de três anos. Eles têm de preencher requisitos como idoneidade moral e reputação ilibada.
O colegiado foi criado em 1999, por decreto do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que se viu pressionado depois de um escândalo envolvendo ministros que usaram jatos da FAB (Força Aérea Brasileira) para viagens particulares ao arquipélago de Fernando de Noronha.
Com ele, ministros, dirigentes de estatais e altos funcionários dos ministérios, com cargos de natureza especial, passaram a sofrer sanções éticas quando comprovado o desvio de conduta.
A comissão pode aplicar advertência pública, uma censura ética, ou, em casos mais graves, recomendar ao presidente a exoneração do servidor ou autoridade -é essa atribuição que poderá acabar se o plano da CGU for implementado.
No passado, as sugestões de demissão de ministros feitas pela comissão de ética pressionaram presidentes, que se viram constrangidos diante da opinião pública.
Em 2011, por exemplo, o então ministro do Trabalho, Carlos Lupi, entregou o cargo dias depois de o órgão federal recomendar sua exoneração para Dilma Rousseff (PT). Ele foi alvo de denúncias de irregularidades em convênios de cursos de capacitação profissional por entidades ligadas ao seu partido, o PDT.
O ex-ministro da Secretaria de Governo Geddel Vieira Lima (MDB) também pediu demissão, em 2016, durante o governo Michel Temer, após a abertura de investigação que averiguava se houve conflito de interesse em pedido feito por ele ao Ministério da Cultura para liberação de obras de um edifício em Salvador onde ele possuía imóvel.
A CEP foi inspirada em convenções internacionais de combate à corrupção, surgidas nos âmbitos da OEA (Organização dos Estados Americanos) e da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Nos Estados Unidos, atua desde 1978 o Escritório de Ética Governamental, uma agência independente que também age para prevenir conflitos de interesse no poder público.
A possibilidade de esvaziamento da comissão de ética não é o primeiro ataque desferido pelo atual governo. No início do ano, com o argumento de “despetizar” o governo, a Casa Civil exonerou a maioria dos funcionários que assessoram o colegiado, o que paralisou os seus trabalhos. Com a repercussão negativa, o Palácio do Planalto recuou e anunciou a renomeação, após reclamação do comando do colegiado.
Procurada, a CGU não respondeu a uma série de perguntas sobre a reformulação, feitas pela reportagem. Por meio de sua assessoria, disse que “não há, no âmbito da pasta, nenhuma proposta ou estudo no sentido da extinção da CEP”.
Para o ex-presidente da CEP Mauro Menezes, sob a retórica da moralização, o atual governo tem subvertido o princípio da impessoalidade, violando fronteiras entre público e privado.
“A comissão sempre representou a voz da sociedade, preconizando um juízo ético sob garantias constitucionais e agora não pode se calar”, disse.
Segundo ele, são preocupantes na atual gestão blindagens de autoridades do governo e interferências de familiares do presidente que, mesmo sem cargos, têm poder de mando.
“Convém lembrar que a violação ética é a antessala da corrupção”, disse.
por GUSTAVO URIBE E JULIO WIZIACK FOLHAPRESS