Estudo aponta dificuldade em punir letalidade policial contra vítimas negras

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Estudo produzido pelo Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV (Fundação Getúlio Vargas) indica que, mesmo em casos de grande repercussão de letalidade policial com vítimas negras, a Justiça falha em responsabilizar agentes e instituições.


A pesquisa analisou oito casos famosos ocorridos entre 1992 e 2020 no país, que deixaram 140 mortes. Agentes do Estado foram responsabilizados pelos crimes de apenas dois desses casos, com nove condenações confirmadas no total.


Diante do cenário, os pesquisadores afirmam que vão encaminhar aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário uma série de recomendações com o objetivo de reduzir a impunidade.


Foram analisados no estudo o massacre do Carandiru (1992), o caso da favela Naval (1997), a chacina do Borel (2003), o caso Amarildo (2013), a chacina do Cabula (2015), o massacre de Paraisópolis (2019), o caso Luana Barbosa dos Reis (2016) e o caso de Beto Freitas (2020).


“São casos marcados por muita atenção da mídia. O controle social intensificado pela visibilidade das histórias, pela lógica, poderia pressionar juízes e promotores a atuarem com algum zelo procedimental. Isso, de fato, não aconteceu”, apontou o advogado e professor da FGV Direito, Thiago Amparo, um dos coordenadores do estudo.


A pesquisa observou que, dos policiais condenados, alguns seguiram depois para a carreira política, enquanto outros voltaram à corporação após o cumprimento da pena.


“A gente procurou observar o papel do sistema de Justiça quando é chamado para atuar nesses casos em que policiais assassinam pessoas negras”, disse o sociólogo Paulo Cesar Ramos, também coordenador do trabalho. Segundo ele, durante o estudo, que durou cerca de um ano e meio, os pesquisadores notaram mecanismos capazes de retardar julgamentos. “Em todos os casos a gente pode observar formas heterodoxas, criativas e alguns descaminhos nos fluxos processuais”, acrescentou Ramos.


O sociólogo afirma que, à exceção do caso da favela Naval, todos os outros tiveram algum problema relacionado à decisão do julgamento –quando houve julgamento. “Justificativas teratológicas, esdrúxulas, por parte dos policiais para os casos dos quais eles participaram”, acrescentou Ramos.
Um dos problemas apontados pelos pesquisadores diz respeito à desconfiança em relação a sobreviventes, testemunhas e familiares de vítimas.
Entre as recomendações que serão encaminhadas às autoridades estão o reconhecimento da palavra de testemunhas –e não apenas a versão dos agentes envolvidos nos casos; a necessidade de que o sistema de Justiça reconheça as evidências do racismo de Estado e seu impacto nas mortes; e a necessidade de uma cobertura midiática que não confunda vítimas com investigados.


“A gente espera que essas recomendações sejam lidas e debatidas pela sociedade. É uma questão que não depende só das autoridades, depende da sociedade civil e dos poderes constituídos”, disse Ramos.


Para a antropóloga Juliana Farias, que também fez parte do estudo, é preciso “romper o círculo de violência racial”.


“Se somente quem puxa o gatilho for responsabilizado, nunca haverá compromisso efetivo com a não repetição de práticas de violência racial. É preciso chamar atenção para cada parte dessa engrenagem que administra burocraticamente as mortes de pessoas negras”, afirmou Farias.


A pesquisa também deu origem ao podcast “Justiça em Preto e Branco”, que estreia nesta sexta-feira (18) –ao todo, serão oito episódios. Narrado pelo ator Christian Malheiros e pela criadora de conteúdo Andreza Delgado, o material traz personagens que fizeram parte direta ou indiretamente dos casos analisados, como familiares, ativistas, advogados, parlamentares e especialistas.


O primeiro episódio vai se aprofundar na história do massacre do Carandiru, em que 111 presos do pavilhão 9 da extinta Casa de Detenção, na zona norte de São Paulo, foram mortos após uma invasão policial, há 30 anos.


O estudo contou com o apoio do Google.org, instituição filantrópica do Google, da Tides Foundation, do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e do CQS/FV Advogados.

Casos analisados

Massacre do Carandiru – 2 de outubro de 1992


Rebelião na extinta Casa de Detenção resultou na entrada de tropas da PM no complexo penitenciário. Após poucas horas de ação, 111 homens foram mortos. Os julgamentos de 74 policiais ocorreram entre 2013 e 2014 e resultaram em condenações. As decisões foram anuladas em 2016 pelo TJ-SP e restabelecidas em 2021 pelo STJ. Neste ano, o STF manteve as condenações, e nesta quinta-feira (17) foi certificado o trânsito em julgado.

Favela Naval – 7 de março de 1997


Sob o pretexto de reprimir o tráfico de drogas na favela, localizada em Diadema (SP), PMs montaram operações em uma das entradas da comunidade. Um cinegrafista amador registrou abordagens violentas. Em uma delas, o policial Otávio Lourenço Gambra, o Rambo, disparou e matou o conferente Mário José Josino, 30. Rambo foi julgado duas vezes, em 1999 e em 2000 –na primeira, teve o júri anulado. Recurso apresentado em 2001 reduziu sua pena de 47 para 15 anos. Ele ficou preso por 9 anos.

Chacina do Borel – 17 de abril de 2003


Quatro jovens, três deles negros, segundo a pesquisa, foram mortos a tiros na Favela do Borel (RJ). Conforme o estudo, policiais militares alegaram legítima defesa. O Ministério Público denunciou cinco PMs por participação nas mortes. Todos os policiais foram absolvidos.

Amarildo Dias de Souza – 14 de julho de 2013


O pedreiro Amarildo Dias de Souza estava na porta de sua casa, na Rocinha (RJ), quando foi levado por PMs até a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) local. Ele nunca mais foi visto. Oito policiais militares da UPP foram condenados em primeira instância, com decisão confirmada pelo Tribunal de Justiça, tendo efetivamente cumprido suas sentenças, conforme a pesquisa. A maior pena foi do major Edson Santos, condenado a 13 anos e sete meses de reclusão. Após cumprir parte da pena, ele foi reintegrado à corporação.

Chacina do Cabula – 6 de fevereiro de 2015


Após operação da PM em uma comunidade pobre na Vila Moisés, em Salvador, 12 pessoas foram encontradas mortas. Os agentes do estado teriam disparado 143 tiros no total. Os policiais alegaram que houve confronto com traficantes e usuários que planejavam roubar caixas eletrônicos. O imbróglio sobre quais instituições deveriam tocar o processo atrasou sua conclusão. O caso segue sem desfecho e em segredo de Justiça.

Luana Barbosa dos Reis – 8 de abril de 2016


Luana Barbosa dos Reis saía de casa de moto para levar o filho a um curso, em Ribeirão Preto (SP), quando foi abordada por uma viatura com três policiais homens. Após reivindicar seu direito de ser revistada por uma mulher, foi agredida com socos e chutes. Luana morreu em decorrência de lesões cerebrais cinco dias após as agressões. Os três policiais foram denunciados pelo Ministério Público, e o caso aguarda julgamento.

Massacre de Paraisópolis – 1° de dezembro de 2019


Nove jovens morrerem durante intervenção da PM nas proximidades de um baile funk em Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, onde havia centenas de pessoas. As causas das mortes foram asfixia e traumas na coluna. Investigação da Corregedoria da PM apontou legítima defesa na ação dos PMs. Já a apuração da Polícia Civil, que foi seguida pelo Ministério Público, indiciou 12 policiais por homicídio com dolo eventual, quando se assume o risco de matar. O caso segue sem julgamento.

Beto Freitas – 19 de novembro de 2020


João Alberto Silveira Freitas, 40, fazia compras em uma unidade do Carrefour, em Porto Alegre (RS), quando foi imobilizado, espancado e asfixiado até a morte por dois seguranças do supermercado. Ministério Público denunciou seis pessoas por homicídio, sendo duas delas os seguranças do local. O caso ainda aguarda admissibilidade da acusação perante o Tribunal do Júri.

PAULO EDUARDO DIAS

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