Havana, 1960. Uma marcha fúnebre comandada por Fidel Castro prestava homenagem aos mortos na explosão do cargueiro Le Coubre, que chegara da Bélgica com toneladas de armamentos e estava sendo descarregado na capital cubana. O acidente vitimou cerca de cem pessoas. Fidel atribuiu a responsabilidade à CIA, que é a agência de inteligência dos Estados Unidos. Ernesto Che Guevara estava na cerimônia. Em um instante — aquele mesmo instante decisivo eternizado pelo mestre Henri Cartier-Bresson —, o fotógrafo cubano Alberto Korda fez um registro do guerrilheiro argentino. Che olhava para o horizonte, altivo, austero, líder, frágil, utópico, distópico. (Você já sabe de que imagem estou falando, e vai interpretá-la na medida do amor ou do ódio ao personagem.)
Quando ainda era estudante de medicina, Ernesto Guevara fez um giro pela América do Sul e ficou muito impressionado com a pobreza, com o descaso, com tudo que faltava. Essa jornada é descrita no lindíssimo filme “Diários de Motocicleta”, com direção do brasileiro Walter Salles e com o excelente ator mexicano Gael García Bernal no papel de Ernesto. Che Guevara fez sua história e, anos depois, foi mitificado em uma fotografia que habita o acervo imaginário da humanidade.
A partir da foto de Korda, o artista Jim Fitzpatrick fez uma pintura que tornou-se também icônica. E nesta metalinguagem de ícones, a lenda Andy Warhol reproduziu o rosto do guerrilheiro no seu inconfundível estilo Pop Art. Em uma daquelas ironias já bastante propagadas acerca da imagem, fala-se que o líder revolucionário ficaria bastante chateado ao ver seu rosto tornar-se todo tipo de souvenir ou motivos publicitários na esteira do capitalismo que ele combatia.
Butler, estado da Pensilvânia, 2024. Donald Trump fazia um comício quando, de repente, estampidos foram ouvidos. Eram tiros. A plateia se assustou. O líder dos republicanos foi ao chão. Os seguranças se movimentaram. O ex-presidente foi ferido na orelha e o atirador, que estava em um telhado, foi abatido. Trump se levantou rapidamente, recebeu o suporte da equipe responsável pela sua proteção e foi fotografado com a bandeira dos Estados Unidos ao fundo, imensa, o punho cerrado e a face forte, brava, assustada ou debochada. (Você já sabe de que imagem estou falando, e vai interpretá-la na medida do amor ou do ódio ao personagem.)
Já pipocaram memes e produtos com a cena protagonizada pelo novo herói estadunidense. Sobreviver a uma tentativa de assassinato é um milagre. Trump deve comemorar. Sair do episódio com uma fotografia poderosíssima é a realização do sonho de qualquer marqueteiro. “A imagem não pode ser neutra. O poder do olhar deve influenciar as pessoas, porque o ato de fotografar tem que ser político, e não um mero acaso instantâneo”. Esta citação do fotógrafo Walter Firmo ilustrava uma exposição dele, que visitei no Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte, algum tempo atrás.
Fotografar, interpretar imagens e existir no mundo são atos políticos e necessários. Ainda não sabemos como o tempo lidará com a foto já icônica de Trump — nos tempos hodiernos, todo dia surge algo icônico. Será amplamente reproduzida ao longo dos tempos? Será motivo de sátiras? Será adorada pelas futuras gerações de republicanos ou adeptos de vertentes da direita mundo afora? Espero estar vivo para saber.
Enquanto aguardamos o tempo fazer o seu papel, podemos nos divertir escutando música, por exemplo. Há muitos anos, os Titãs desafiaram nossos cérebros e nossa capacidade de discernir com uma letra que combinava entretenimento e contestação. “Que não é o que não pode ser que/ Não é o que não pode/ Ser que não é/ O que não pode ser que não/ É o que não/ Pode ser/ Que não/ É”. Assim começa a letra de “O Quê”, e segue em círculos virtuosos até o final. Seja com Che Guevara, seja com Trump, seja com a gente, o tempo há de colocar as coisas em seus devidos lugares.
É. Pode ser.
(*) Jornalista e publicitário. Professor na Univale e poeta sempre que possível. Instagram: @bob.villela | Medium: bob-villela.medium.com
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