CENSO-EDUCAÇÃO: Presença de negros avança pouco em cursos de ponta das universidades

FOTO: Divulgação

A presença de negros no ensino superior tem tido alguns avanços recentes, mas nos melhores cursos do país o retrato racial é de uma desigualdade mais acentuada.

Dados do Censo da Educação Superior, do Ministério da Educação, tabulados pela Folha de S.Paulo, mostram que o movimento de inclusão de alunos negros nos últimos anos não alcançou a parcela de cursos mais bem avaliada e de melhor reputação. O cenário inclui instituições públicas e particulares –ou seja: instituições com e sem cotas.

Em todos os cursos das 40 carreiras com mais alunos, 42% dos matriculados eram negros (autodeclarados pretos e pardos), de acordo com dados de 2016. Esse percentual era de 34% em 2011 –uma evolução de oito pontos percentuais.

O panorama é outro ao analisar apenas os dez melhores cursos de cada carreira. Nesse Top 10, apenas 27% dos alunos em 2016 eram negros. Em 2011, eram 26%.

A relação dos dez melhores cursos foi extraída da última edição do RUF (Ranking Universitário Folha), que cruza indicadores educacionais com pesquisas sobre ensino e o mercado de trabalho. O RUF também segrega a análise de cursos às 40 carreiras com mais alunos, o que foi seguido pela reportagem para formar um grupo mais homogêneo de análise.

A relação inclui as carreiras mais tradicionais, como administração, medicina e engenharia. No Top 10, estão instituições reconhecidas e desejadas por estudantes –e que têm mais sucesso em empregabilidade.

A Folha de S.Paulo calculou os percentuais a partir do questionário dos alunos. Só foram considerados para o cálculo os estudantes que responderam ao item sobre raça/cor de pele.

A reportagem adotou os dados de 2016 por já terem passado por revisão do MEC. Podem ter ocorrido alterações no perfil de ingresso nesses cursos entre 2017 e 2019, mas tanto a diversidade de instituições que fazem parte do grupo Top 10 quanto o sistema de seleção de alunos indicam estabilidade do quadro geral.

A comparação com 2011 ainda reforça o cenário de desigualdade entre as 40 carreiras e os dez melhores cursos, uma vez que a Lei de Cotas opera desde 2012 nas federais, ainda que com percentuais de inclusão incrementados ano a ano.

Dos 400 cursos que fazem parte do Top 10, 64% são de universidades federais, 25% estão em estaduais e 13% são de particulares. Dessa forma, o retrato racial identificado não reflete apenas o resultado da Lei de Cotas, que incide nas federais.

Entre as estaduais, universidades como USP e Unicamp passaram a adotar reserva de vagas para negros, por curso, só a partir de 2019. Foram reservados 15% na USP e, na Unicamp, um mínimo de 25%.

A Unesp iniciou a política em 2014 e a UEL (Universidade Estadual de Londrina), que também tem cursos na lista, tem reserva de vagas desde 2004. A partir de 2018, ela passou a reservar 25% das vagas para negros. A reportagem analisa o total de matrículas, não apenas o percentual de ingresso a cada ano.

Nas federais, a Lei de Cotas chegou a 2016 com a previsão de ter ao menos 50% do alunos ingressantes de escolas públicas. Dentro desse percentual, há a exigência de que seja atendida a proporção de negros registrada pelo IBGE em cada estado –dessa forma, o mínimo de negros varia a cada instituição dependendo do estado onde ela está.

Mais da metade (54,9%) da população brasileira é negra. O grupo enfrenta condições financeiras mais adversas: três em cada quatro pessoas entre os 10% mais pobres do país são negras, segundo dados do IBGE, de 2015.

Ser preto no Brasil aumenta a probabilidade de fracasso escolar na educação básica em até 19 pontos percentuais, mesmo considerando alunos com pais com o mesmo perfil de escolaridade. Neste estudo de 2012, da pesquisadora Paula Louzano, o fracasso foi medido pela repetência e evasão de alunos do 5º ano.

Instrumentos como a interiorização de campus, a Lei de Cotas, programas de financiamentos e bolsas têm sido vetores de diversidade, tanto para alunos de escola pública como para negros. Mas nos cursos de ponta, a situação é mais tímida.

Aluno do 4º ano de direito na USP, Eduardo Rocha, 23, diz que, além do obstáculo do vestibular, ser negro em um ambiente predominantemente branco é desafiador.

“Quando olho na sala e não me vejo, não me vejo em nenhum dos professores, é uma forma de a universidade mostrar que eu não pertenço àquele lugar”, diz ele, que estudou em escola privada e fez cursinho pré-vestibular, sempre com bolsas de estudos.

Após anos de resistência, a USP implementou cotas a partir do ano passado, de forma gradual. Nas federais, onde a lei opera desde 2012, o percentual de alunos negros (pretos e pardos) chegou, no geral, a 51% no ano passado, segundo pesquisa da Andifes (associação que representa os reitores das universidades).

Para Frei David Santos, da ONG Educafro, um motivo importante desse cenário “é o histórico sucessivo de investimento na exclusão por parte dos governadores de cada estado”, responsáveis pelo ensino médio.

“Não dá para as escolas privadas prepararem para o vestibular e as públicas, não”, diz. Santos ainda chama a atenção para os casos de fraudes recentes na autodeclaração, que precisam ser combatidos pelas instituições.

A discussão de reserva de vagas não chegou a atingir as instituições particulares de ponta. Algumas investem em bolsas como forma de democratizar o acesso.

Gabrielly Sadovski, 19, é a primeira mulher negra a presidir a empresa júnior da FGV. Oriunda de escola pública, ingressou no curso de administração pública em 2017 após passar por um cursinho popular oferecido por alunos da fundação.

“Os negros querem estar em posição de liderança e precisam de apoio. Não dar suporte é uma forma de afastar”, diz ela, que conta com bolsa. “A situação melhorou muito, mas ainda precisa mudar. Os negros ainda ocupam um lugar específico.”

Na FGV-SP, o curso de administração pública tem registrado uma maior diversidade do que em administração de empresas ou economia da mesma escola.

No ano passado, um aluno chamou um colega negro de escravo ao postar uma foto dele em um grupo de  WhatsApp. O caso de racismo provocou grande repercussão e acabou indo parar na Justiça –o aluno chegou a voltar às aulas, mas depois se transferiu.

O professor Marco Antonio Carvalho Teixeira afirma que o episódio ocorreu na esteira da abertura da escola a uma postura de maior diversidade. “O nível de inclusão há dez anos era zero”, diz.

“A diretoria fortaleceu as atividades da comissão de diversidade. Hoje todos os alunos ingressantes passam por formação em cultura da diversidade por meio de oficinas”, completa.

Teixeira ainda ressalta que, de maneira mais ampla, a presença de negros em determinadas carreiras reflete também a realidade excludente do mercado de trabalho. “São dois problemas. Não tem estudantes, de um lado, e empresas, de outro, sem políticas de diversidade para contratar.”

A UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) tem cursos no Top 10 em 39 das 40 carreiras analisadas, sendo o maior número. A USP aparece na sequência, com 38, seguida de UFRJ e UFRGS (federais do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, respectivamente), ambas com 36 cursos.

A proporção de negros varia a cada carreira. Em administração e direito, são 23% (nos cursos Top 10). A maior inclusão: serviço social, com 50%.

A carreira com menor inclusão é a de comunicação, com apenas 4% de negros matriculados nos melhores cursos, segundo dados de 2016. Propaganda e marketing aparece na sequência, com 12%.

São exatamente essas as carreiras com mais cursos particulares no Top 10, em que não há reservas de vagas. São cinco em propaganda e quatro em comunicação.

Segundo Pedro Jaime, estudioso do tema e docente da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), uma das faculdades de destaque na área, as instituições ainda não despertaram para a importância da diversidade.

“As boas instituições dessas áreas nos Estados Unidos e na Europa têm se preocupado com isso de forma bem efetiva”, diz. “Os alunos estão se preparando mal para um mercado de trabalho em mutação e para a atuação em empresas que valorizam cada vez mais a diversidade.”

Na Faculdade Cásper Líbero, que tem o mais tradicional curso de jornalismo do país, a lógica de inclusão é a oferta de bolsas. Diretor desde fevereiro, o professor Welington Andrade diz que nos últimos dez anos a presença de negros tem crescido, embora não de forma acentuada.

“Por ser uma fundação, temos uma ação agressiva de bolsas e, em um primeiro momento, não pensamos em adotar uma política de cotas”, diz. “Mas estamos conversando com o coletivo negro da Cásper, que também é reflexo desse novo momento, e queremos ouvir o que se propõe.”

BRASÍLIA, DF, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

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